quarta-feira, maio 13, 2009

Ler, mais que ver 389x152

Os Crimes da Rua Morgue (1841); O Mistério de Marie Rogêt (1842);

A Carta Roubada (1844), de Edgar Allan Poe

Os Crimes da rua morgue e outras historias

O nome de Edgar Allan Poe (1809 –1849), só não é sinónimo de engenho por má vontade de estilo, pela compreensível ignorância do restrito saber individual, e, porque a palavra engenho apareceu muito antes do conjunto das três primeiras identificarem o norte-americano responsável, não por um estilo, mas vários, transversais a dois séculos de literatura e a milhares de anos de existência de usança humana.

Edgar Allan Poe's Illustrated Bio.0

Como todos nós, Poe experimentou o sentimento de perda, mas, ao contrário da maioria de nós, essa sensibilidade levou-o à aptidão pela ruína. O jogo e o álcool acabou por levá-lo num delírio que lhe consumiu a mente. Após a morte da mulher, o delírio sobejou-se à vida, morrendo em 1849, em loucura. O imaginário da sua obra poética é envolta pelo místico e pela procura da beleza – o único objectivo digno de esforço de um poeta, como defendia. Esta estética foi incompreendida pelos seus contemporâneos, mas acabou por ter, mais tarde, um grande eco na poesia francesa (Baudelaire, Mallarmé) e no nosso Fernando Pessoa. Como prosador criou uma série de contos de mistério e horror. Os três contos do título enquadram-se num outro grupo. Introduziram um novo género à literatura mundial: os policiais, ou as depois chamadas - histórias de detectives (até aí a palavra detective não existia). Os Crimes da Rua Morgue é a primeira obra policial conhecida, baseada num estilo literário assente na lógica rigorosa e na dedução intelectual.

Na altura em que Poe escreve os seus contos policiais, a violência e o crime urbano espalhavam-se por toda a América, e aumentavam de uma forma que as próprias forças policias sentiam-se impotentes para o travar e compreender. Os periódicos da altura, faziam sucesso a reportar e descrever os crimes de sangue durante semanas e meses, sem pejo de dar voz a todo o tipo de opinadores. Poe acabou por beber muita da sua influência neste tipo de relatos, com os quais se divertiu a desconstruir e a subverter as suas teorias, tanto pela lógica, aparentemente imediata e à distância de todos, apesar de encoberta por sofismas, como pela análise de detalhes físicos, à partida mal interpretados pelos investigadores e, pela sua própria e insofismável interpretação, do comportamento humano.

“… as coincidências constituem barreiras intransponíveis no caminho dos pensadores que foram educados para ignorar a teoria das probabilidades, à qual os objectivos mais gloriosos da investigação humana são devedores da sua não menos gloriosa descoberta.”

Monsieur C. Auguste Dupin é o cavalheiro (o tal primeiro detective por acaso, que nada tem a ver com as forças policiais), presente nos três contos, dono de uma peculiar perspicácia e de uma capacidade analítica fora do vulgar. São estas virtudes, na realidade, as de Poe, que o levam a desconstruir as charadas que se apresentam nos três contos, aparentemente, três crimes inexplicáveis. A partir daqui começa uma das reflexões de Poe – exteriores aos casos - sobre os assuntos fora dos limites das simples regras, nos quais a perícia do analista se revela em todo o seu fulgor, o que o distingue dos usuais investigadores policiais, muito agarrados ao método e com uma intervenção excessivamente processual. Porque nem sempre só no pormenor está a verdade, e, porque dois motivos, cada um com um dado valor, não têm, necessariamente, um valor, quando unidos, igual à soma das suas componentes isoladas. Daqui surge uma das conclusões finais do Crime da Rua Morgue: a sabedoria da maioria dos homens reconhecidamente inteligentes, não tem alicerces. Está toda na cabeça e não tem corpo, sendo demasiados astuciosos para serem profundos, o que leva à inevitável propensão humana para nier ce qui est et d’expliquer ce qui n’est pas (negar o que existe e explicar o que não existe).

Edgar Allan Poe's Illustrated Bio.

No Crime da Rua Morgue, duas mulheres, mãe e filha, são encontradas mortas em casa. Os vizinhos ouvindo uma sucessão de gritos horríveis ocorrem ao prédio e enquanto arrombam a porta da frente e sobem as escadas para atingir o quarto andar do apartamento das vítimas, ouvem duas vozes, alegadamente, dos assassinos - uma voz aguda que nenhuma das testemunhas unanimemente conseguiram identificar o dialecto e outra rouca, de um francês. O cenário com que se depararam, já mergulhado num silêncio sepulcral e trancado por dentro, era o que mais próximo se pode imaginar do inferno – na sala encontrava-se o corpo da filha preso de cabeça para baixo, na chaminé da lareira, duas ou três longas espessas madeixas de cabelos grisalhos, empapados no chão, em sangue ao lado de uma navalha de barba. No pátio das traseiras, jazia o cadáver da mãe, degolada de forma tão perfeita que a cabeça se separara do tronco. Dupin entra em cena depois de ler os relatos dos vários periódicos e da polícia acusar um indivíduo que Dupin acredita enfaticamente que é inocente.

mystery_of_marie_rogetNo Mistério de Marie Rogêt, baseado num assassínio de uma jovem, Mary Cecilia Rogers, assassinada nas proximidades de Nova Iorque, desaparecida durante vários dias e depois encontrada morta no rio, segue uma linha paralela entre a ficção e a realidade que, apesar de Poe desenvolver o seu texto e conclusões longe do teatro da atrocidade, recorrendo apenas aos meios de investigação que os jornais forneciam, muito depois da publicação, a maioria dos pormenores principais e a conclusão geral acabaram por se vir a confirmar. A isto não é indiferente o cuidado com o rigor da análise científica levada a cabo por Poe, como disso é exemplo a sua justificação do cadáver apenas ter feito a sua aparição à superfície uma semana depois, desfazendo teorias avançadas pela imprensa sensacionalista, mais preocupada em estabelecer um ponto de vista, do que defender a causa da verdade.

O último conto, “A Carta Roubada”, o único crime que não é de sangue, um ladrão, o ministro D…, apodera-se de um manuscrito de uma personagem da mais alta hierarquia política, à sua frente, sem que esta pudesse fazer o que fosse, o que faculta ao seu detentor um ascendente sobre a ilustre personagem cuja idoneidade e paz de espírito perigam seriamente. Neste caso, é o próprio inspector da polícia que procura Dupin, depois do sucesso das suas excêntricas investigações nos casos anteriores. Com a garantia de já ter movido todas as diligências, oficiosas e não oficiosas, de revista e estudo de toda a vida e todos os cantos onde o ministro D… pudesse ter guardado a carta furtada, sem sucesso de a encontrar, só Dupin parece ser capaz de a rever, da forma mais simples e depreendida que a complexidade do comum deixa olvidar.

Estes três contos são mais alguns pedaços da grande influência de Poe, o inventivo, o verdadeiro criador, tão humano como qualquer um de nós, mas pelo esmero da feitura singularmente habilidosa, mais perto da divindade do que muitos ícones orados. O homem agradece, a arte agradece.

7 comentários:

Luís disse...

Muito bem. Poe deve também estar muito satisfeito com este post do OShihan. Excelente.

Hélder Aguiar disse...

Mais um grande nome, (e que homenagem!) dissecado aqui : )

Unknown disse...

E a Lady Gaga ja conhecem?

O Shihan disse...

Roberto, minha eminência, muito me agrada que continues a levar a descrição do título do blog à letra. É assim mesmo! E sim, conheço perfeitamente, o omnisciente google já me encarregou de apresentar a sua graça.

O Shihan disse...

Ah! Lady Gaga parece encarnar perfeitamente o espírito artístico desta casa.
http://thethingswethink7.files.wordpress.com/2009/04/lady-gaga22.jpg

O Shihan disse...

Que diabos! É em alturas como esta, quando Ladies Gagas arrancam para a vida em 1986, que vejo a minha puerícia já perdida num longínquo horizonte, acabado num infinito de mil leptidópteros na sua última fase de evolução, a flutuar no éter da criação.

Hélder Aguiar disse...

LOL o que eu não dava para conhecer a figura misantrópica da lady gaga