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sábado, janeiro 16, 2010

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A Vida Dramática dos Reis de Portugal

de José Brandão (2008)

a vida dramática dos reis de portugal

“Conhecer-se a si próprio foi, desde a mais remota Antiguidade, a principal condição de virtude.”

O grosso da história de um país chamado Portugal foi vivido sob o domínio do regime monárquico - o único que durante séculos garantiu uma unidade possível entre os diferentes povos, quando as suas aspirações e as dos seus contrários assim o permitiam. Eram estes monarcas os representantes de uma identidade e de uma soberania venerada que punha e dispunha ao sabor da sua vontade, abençoada pela Santa Madre Igreja das “crueldades pias e atrocidades santas”.

Este compêndio de José Brandão é uma nova forma de abordar a história. O costume e a prática apresentou-nos livros de história em formato de calhamaço, de tamanho proporcional ao tempo que percorria na relembrança e aos detalhes com que se importavam.  A Vida Dramática dos Reis de Portugal é uma leitura fácil que percorre cronologicamente a história dos 30 reis e duas rainhas que nasceram portuguesas e governaram (ou foram a face visível dessa governação), durante quase oito séculos, o então Reino de Portugal.

São 32 os capítulos, correspondentes cada um a um monarca (ficaram de fora os Filipes de Espanha). Neles se contam as suas histórias, desde o nascimento até à morte. A narrativa é solta e precisa, percorrendo, com insistência, os feitos, polémicas, intrigas, traições e crimes, talhando as índoles dos 30 homens e 2 mulheres que se viram por força da ditadura da hereditariedade, ou pela simples motivação de uma ambição tomar em braços os destinos de um país e de um povo.

Retrato do Rei Dom Afonso VI D. Afonso VI, o retrato de um rei diminuído, de um autor desconhecido, no Museu dos Coches.

Revendo a promiscuidade da forma como os diferentes reinos entre si desposavam, por conveniências políticas, as suas mais ilustres filhas, José Brandão exibe o papel importante que muitas amantes e filhos bastardos dos nossos reis tiveram na História do país, assumindo muitos deles grandes posições na nobreza e no clero, chegando um deles – D. João I (o de Boa Memória) – a rei, dando início à segunda Dinastia. Dos 32, só D.João II (O Príncipe Perfeito) era filho de mãe e pai português, casando-se também com uma portuguesa. O resultado de casamentos de primos, com primas, sobrinhos com tias, cunhados com cunhadas e de netas com tios-avôs, além dos muitos enfermos a que deu origem, deu à nossa história perversos, visionários, indolentes, adúlteros, facínoras, criminosos, bígamos, um pouco de tudo, para o quais devemos olhar com a atenção dos valores morais de então. 

De Afonso Henriques (O Conquistador) - o filho que batia na mãe; autoproclamado rei de Portugal em 1139, após a batalha de Ourique contra os mouros, a despeito dos reis de Castela e Leão -, até D. Manuel II (O Desventurado) – o último que se vê obrigado a abandonar o reino, pouco depois do dia 5 de Outubro de 1910, deixando para trás já uma república –, são registadas com este livro um conjunto interessante de factos curiosos deste importante conjunto de personalidades que governaram a nossa soberania na conquista, na abundância e na tragédia de uma vida dramática que por cá continuará.

segunda-feira, janeiro 04, 2010

Ler, mais que ver 389x152 Os Irmãos Tanner de Robert Walser (1907)

Os Irmãos Tanner “Por vezes tenho a sensação de estar separada da vida por uma parede fina mas opaca. Mas não posso ficar triste, só posso reflectir sobre isso”.

Kaspar é pintor, leva uma vida solitária e recolhida porque se dedica apenas à pintura; Hedwig vive numa aldeiazinha de telhados de palha, como professora; Emil, o ideal de um homem bonito e talentoso, deixou o seu destino dar forma à infelicidade e está num manicómio; Klaus, o mais velho, é  um homem ilustre com uma posição sólida e respeitável na vida; e Simon, o espírito livre e insidioso na recusa das mais elementares convenções sociais (salta de emprego em emprego, vagueia de cidade em cidade, envolve-se com quem encontra, sem nunca realmente se envolver, partindo de seguida sem destino nem propósito). São estes os irmãos Tanner de Robert Walser, uma transparência de experiências reais da sua vida e um pasmo de procrastinação da vida e da morte de Walser.

Uma longa marcha de deambulações despreocupadas, muitas vezes até contraditórias, de monólogos das diferentes personagens, perdidas em descrições detalhadas e delicadas da alma e natureza, de si e daquilo que calha em sorte os rodear, é a imagem de marca desta obra, e o que a torna tão singular.

robert_walserAssim como o caricato Simon Tanner, Robert Walser era um errante, conhecido pelas suas longas jornadas pela natureza. A narração dos Irmãos Tanner é um exercício de racionalização e ao mesmo tempo de grande sensibilidade, de um sonhador incompreendido que entendeu e conheceu a miséria, mas, mesmo assim, apenas insinuou a melancolia, sem nunca cair nela, ridicularizando e tratando com indiferença todas as conquistas que o homem vulgar almeja (dinheiro, sucesso, poder).

 

Uma obra sem destino nem causa, hábil em revelar momentos e sentimentos extraordinários, estranhos para quem não está habituado a tropeçar nas durezas da realidade da vida. Robert Walser esteve grande parte da sua vida num manicómio e acabou por morrer durante uma das suas longas caminhadas, sendo encontrado morto tal e qual como o descreveu para uma das suas personagens deste livro.

“Tão nobre a sepultura que ele escolheu para si mesmo. Jaz debaixo de magníficos pinheiros verdes cobertos de neve. Não vou avisar ninguém. A natureza vela pelos seus mortos, as estrelas cantam em voz baixa em torno da sua cabeça e os pássaros nocturnos grasnam, e é esta a música ideal para quem já não ouve nem sente”.

segunda-feira, novembro 30, 2009

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Hadji-Murat de Lev Tolstói (1911)

Hadji-Murat

“No serviço e em casos tão embrulhados, é difícil, se não impossível, seguirmos só um caminho directo, sem arriscarmos errar e sem carregarmos com a responsabilidade; mas quando o caminho nos parece directo temos de o seguir – e seja o que Deus quiser.”

O famoso escritor russo Conde Lev Nikolayevitch Tolstói é mundialmente famoso pelos seus romances Guerra e Paz, e Anna Karénina, dois exemplares maiores da literatura mundial. Porém, em 1904, terminou este livro, que viria a ser a sua última obra, publicada em 1911, já a título póstumo.

Durante a sua juventude Tolstói serviu o exército imperial russo na guerra da Crimeia e do Cáucaso; experiências que acabaram por ter uma importância decisiva nos seus trabalhos literários posteriores. Em 1896, quando fazia um passeio por um terreno lavrado, viu-se a recordar os anos em que esteve alistado às ordens do déspota imperador russo Nicolau I e reparou num bonito cardo partido e torcido pelo lavrar da terra, o qual tentou salvar, sem sucesso. Este episódio acabou por tornar-se uma metáfora com a vida de um famoso chefe e guerreiro muçulmano, da região do Cáucaso, que Tolstói conheceu – Hadji Murat.

L.N. Tolstoy. Petersburg, 1856.Tolstói ao serviço do exército russo, em 1856.

Hadji-Murat, ou mais precisamente Hadji Murad, na pronúncia russa, foi um nome bem conhecido das tropas russas e um herói para as gentes do Cáucaso. Defendeu acerrimamente o seu povo e lançou o terror nas tropas russas, numa guerrilha feita a partir das montanhas. Pertencia à corrente mais pacífica do islamismo, fazendo da honra, da educação e do estrito respeito pelos seus costumes a sua bússola orientadora.

Apanhado entre o fanatismo islâmico do senhor da guerra Imam Shamil, com pretensões em dominar toda a região, e os esforços russos de expansão do seu controlo na zona, acaba por ver a sua família aprisionada e perseguido com os seus homens, por Shamil. Nesta obra é narrada a sua rendição aos russos, com o intuito de ajudar os russos a derrubar Shamil. 

Pequeno em tamanho, quando comparado com as obras-mestras de Tolstói, Hadji-Murat é um mordaz e sarcástico, e ao mesmo tempo frio e distante relato do encontro entre duas culturas muito diferentes, da denúncia da Natives_of_the_Caucasus,_north_of_Mingrelia_(A)corrupção moral e espiritual da monarquia e das elites russas, contrastantes com a simplicidade e o vigor espiritual do “bárbaro” Hadji-Murad.

A tragédia de Hadji-Murad é só mais um apontamento da arte e da visão de Tolstói. Uma história cativante, contada com a mestria de um dos grandes autores russos do século XIX, que torna o desafio da leitura um prazer único, preenchida de experiências, princípios, pensamentos e intenções que vão muito para além da simples prosa. Não deixa de ser irónico de como estes eventos, de 1851, ainda hoje podem ser revisto no recente conflito entre russos e tchetchenos, volvido mais de século e meio.

O tempo e a modernidade vieram a dar razão às convicções de Tolstói. Só uma boa educação moral e técnica, baseada no respeito pela liberdade individual política e religiosa, poderia ser um garante de um futuro melhor para a Rússia e suas gentes. Como último exemplo, Tolstói não quis de deixar de prestar a sua homenagem a Hadji-Murad, um símbolo de auto-sacrifício pela sua comunidade, de polidez e honradez; de como pode ser a vida arrastada por uma tal força e que desperdício é ver essa força tão facilmente destruída pela fraqueza das outras.

domingo, novembro 01, 2009

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A Segunda Guerra Mundial de Martin Gilbert (1989)

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Conhecer o passado é fundamental para perceber o presente. Conhecer o nosso passado recente é inevitável para que nos possamos situar no presente, e entender realidades e sensibilidades para além das nossas, que por ignorância não compreendemos e rejeitamos. Conhecer a história é bem mais do que saber meros números e factos, é aprender sobre origens, princípios, fundamentos, direitos e deveres. Conhecer e ter memória pode ajudar-nos a ser melhores do que aquilo que somos, e é por este pormenor escapar ao entendimento da maioria das pessoas, que a história continua a ser vista com tanto desdém e relegada para uma posição subalterna do que se estipula que devam ser os vulgares conhecimentos de um indivíduo.

Have you ever heard these words? Portão de entrada de Auschwitz, um dos mais conhecidos e conservados campos de concentração alemães com a inscrição: “O trabalho vos libertará.”

O conceituado historiador inglês, Martin Gilbert, biógrafo oficial de Winston Churchill e autor de livros sobre a história mundial, como: História de Israel, A Primeira Guerra Mundial e Churchill: Uma Vida, promove, de forma impar, um acervo de informação sobre esse devastador e horripilante acontecimento da história contemporânea, que foi a Segunda Guerra Mundial. Mais de 1000 páginas dos 2174 dias de guerra e posteriores meses, aos quais dedica dois capítulos intitulados: “Retribuição e memória, 1945-1952” e “Um caso interminável, 1953-1989”, dedicado às cicatrizes e feridas por sarar que a guerra deixou nos homens e países que nela participaram. A ilustrar toda a narrativa há 130 fotos e 28 mapas, preparados especialmente pelo autor para este livro, revelando as centenas de lugares mencionados no texto, dos mais conhecidos, aos mais longínquos.

The Manila Bomb Uma entre os milhões de bombas largadas em cidades europeias, durante o conflito, devastando e mudando a face destas regiões para sempre.

Uma leitura seguida e compulsiva, deste livro, não é para todos os estômagos, principalmente, e tendo em conta a narração extensa e minuciosa de um role interminável de mortandades. No entanto, Martin Gilbert teve o cuidado de organizar este livro de forma a que este pudesse ser também uma fonte de consulta acessível e esporádica, com uma inteligente divisão de capítulos e um eficaz índice remissivo.

A guerra começou a 1 de Setembro de 1939 - fez neste ano, de 2009, 70 anos – com a invasão da Polónia pela Alemanha Nazi, sob o pretexto fabricado de “um assalto polaco” à estação de rádio, da cidade alemã de Gleiwitz. A partir daí foi dado o mote para a desmedida violência que as tropas alemãs, e os seus aliados, impuseram às dezenas de estados que invadiram, capitais que cercaram e povos que subjugaram. A superioridade técnica e militar, aliada à cumplicidade soviética dos primeiros anos da guerra, permitiu que rapidamente toda a Europa Central e do Norte estivesse de joelhos perante os exércitos de Hitler e Estaline. Do outro lado, os Aliados, liderados pela Inglaterra de Churchill viam mais uma das suas potências cair perante a força dos países do Eixo – a França, ao mesmo tempo que a Itália do interesseiro e cobarde Mussolini se juntava aos seus parceiros déspotas. Ao mesmo tempo que Hitler e as suas SS criavam as suas máquinas de extermínio, a Alemanha declarava guerra ao seu anterior aliado Soviético. Os Estados Unidos, apesar de sempre terem apoiado as potências Aliadas, com o fornecimento de material militar e civil, manteve-se neutral, mesmo quando os submarinos alemães já afundavam navios mercantes americanos. Só com a declaração de guerra alemã é que Roosevelt assumiu a entrada na guerra, empurrada pelo ataque japonês a Perl Harbour. Se os países do eixo espalhavam o terror pela Europa, no oriente era o Japão imperial tomar como modelo os métodos alemães, espalhando o terror pelo Pacífico e conduzindo uma guerra sangrenta e suicida, mesmo quando a derrota era certa.

Conferência de TeerãoRoosevelt, Churchill e Estaline na Conferência de Teerão, a 30 de Novembro de 1943. O bolo de aniversário era para comemorar o 68.º aniversário de Churchill. A conferência tinha começado no dia anterior.

Se a inicial supremacia militar alemã foi fundamental para o desenvolvimento dos acontecimentos, a arma decisiva dos aliados, desde o inicio da guerra, foi o decifrar das mensagens secretas Enigma, pelos cripto-analistas britânicos de Bletchley, e de todos os códigos subsequentes, que as autoridades políticas e militares do Eixo trocavam entre si, proporcionando que uma grande quantidade de informações fossem conhecidas por antecipação às acções no terreno, permitindo aos Aliados, não raras vezes, estarem um passo à frente dos seus beligerantes.

Dos dois lados, a aposta no desenvolvimento tecnológicos das armas de guerra era uma preocupação constante, que acabou por culminar, com a construção das primeiras bombas atómicas, pelos Estados Unidos. Uma arma com um poder de cerca 20 000 a 30 000 toneladas de TNT, largadas, durante a guerra, sob Hiroshima, a 6 de Agosto de 1945 e Nagasaki, a 9 de Agosto de 1945, levando à rendição do até então insubmisso Japão, três meses após a tomada de Berlim.

Ghost Prisioneiros de guerra alemães, das gulags soviéticas, campos de trabalho que se estima que tenham feito tantas vítimas como os campos de extermínio alemães.

A esta guerra não se compara nenhuma outra. Além de ter percorrido todos os continentes, pela primeira vez na história, uma guerra não se limitou a opor exércitos contra si, colocou como propósito e no centro da batalha populações, grupos étnicos, homens, mulheres, velhos e crianças, perseguidos e exterminados, em nome de um ódio racial propagandeado por um grupo de fanáticos. Hitler e os seus pares conseguiram despertar o que de mais vil e sádico pode encerrar o espírito humano, conduzindo uma das maiores infâmias da história da humanidade.

Hitler and Himmler

À direita, Hitler, o Führer da Alemanha nacional socialista, autor do livro Mein Kampf, onde difundiu as suas ideias racistas e anti-semistas, ideologia que o guiou na Segunda Guerra Mundial. À sua esquerda, Heinrich Himmler, um dos seus maiores apoiantes, responsável pela resolução da questão final judaica.

As marcas, deste conflito, ainda são hoje visíveis, nas linhas que traçam as fronteiras dos países, nas organizações mundiais que se criaram num esforço de paz, nas guerras regionais que se vieram a observar, anos mais tarde, na política e nos dirigentes que fazem a nossa história recente e nos traumas físicos, psicológicos e sentimentos recalcados que se continuam a observar nos dias de hoje, nos descendentes desta guerra. Ainda recentemente tivemos um exemplo bem elucidativo deste clima de desconfiança que continua a pairar sobre muitas sensibilidades, com a exigência  da República Checa, à União Europeia, para que os alemães e húngaros, expulsos do território, após a Segunda Guerra Mundial, não tenham o direito de reivindicar devoluções ou compensações, de forma a ratificarem o Tratado de Lisboa.

Hungry Citizens Episódio transcrito, no livro, do relato de um oficial polaco, durante o cerco alemão a Varsóvia: “Assisti hoje a uma cena reveladora. Um cavalo foi atingido por uma bomba e caiu na rua. Quando, uma hora mais tarde, tornei a passar pelo mesmo sítio, já só restava o esqueleto. A carne tinha sido tirada pelas pessoas que viviam nas imediações.

A narrativa atraente, cronológica e detalhada, deste livro, recupera todos os acontecimentos relevantes da guerra, em todas as frentes (terra, mar e água), cruzando documentos oficiais, resumos de estratégia militar, memórias de diários e relatos, na primeira pessoa, de sobreviventes. Histórias de coragem, heroísmo, desespero e grande sofrimento, em que a políticos, generais, soldados e civis anónimos é dada a mesma importância, no cenário de horrores que foi estar atrás das linhas sob ocupação e em todos os lugares onde o barulho das bombas e os gritos desesperados de morte se fizeram sentir.

quinta-feira, setembro 24, 2009

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Cosmos de Carl Sagan (1980)

cosmos

“Se um ser humano te desagrada, deixa-o viver. Em 100 mil milhões de galáxias não encontrarás outro igual.”

Sejam bem-vindos a conhecer, ou a redescobrir, uma das maiores e mais intimistas obras de divulgação científica, do astrónomo, pedagogo e incansável divulgador de ciência, Carl Sagan.

Cosmos é a sua obra mais conhecida, livro, que mais tarde, deu lugar a uma famosa série televisiva, com o mesmo nome. Além de divulgador de ciência Carl Sagan foi autor de vários romances de ficção científica e teve um papel importante nas missões de exploração Mariner, e da Viking 1 e Viking 2, da NASA.

Nos capítulos “Blues por um Planeta Vermelho” e “Relatos de Viajantes”, descreve pormenorizadamente estas missões, a sua importância e os dados novos que trouxeram para o conhecimento dos nossos planetas vizinhos mais próximos, mas também o caminho feito até lá anteriormente, pelas missões soviéticas e pela missão Voyager aos planetas mais externos do sistema solar - Júpiter e Saturno, Úrano, Neptuno e Plutão.

Io-voyager1 Imagem de Io, a maior lua de Júpiter, obtida pela missão Voyager 1.

Nas mais de 450 páginas, que preenchem o livro, encontramos bem mais do que meros relatos de exploração espacial; é-nos apresentada uma lição entusiasmante sobre a procura de respostas à intrínseca curiosidade do homem, ao longo dos séculos, por tudo o que nos rodeia. De Eratóstenes a Copérnico, passando por Kepler, Galileu, Newton e Einstein, percorremos os séculos, as interrogações e os trabalhos que nos levaram até à posição que ocupamos agora.

Para Carl Sagan o nosso destino é o conhecimento, e a verdadeira importância do nosso mundo está na coragem das nossas perguntas e profundidade das nossas respostas. As perguntas, como descreve, começaram desde que o homem olhou para o céu; as principais respostas começaram a ser encontradas no séc. III a.C, naquele que foi o maior centro mundial de comércio, cultura e saber – a cidade de Alexandria. Mas o declínio do saber, no mundo antigo, veio de dentro da própria Alexandria. A sua, inicialmente, maior impulsionadora, a filosofia, censurou-a mais tarde, com o seu desprezo pelo prático - Platão incitava os seus seguidores a não perderem tempo na observação, centrando-se apenas no pensar; Aristóteles defendeu que os de classe mais baixa, e por isso inferiores, deviam estar sempre sob o mando de um dono, o que para Benjamin Farrington, historiador de ciência, justifica o declínio da ciência no mundo antigo. A tradição mercantil e esclavagista fomentou o desprezo do trabalho manual pelas elites – a ciência faz-se de trabalho manual –, a riqueza e o poder eram obtidos pela posse de escravos, a ociosidade diligenciou a insipiência e a religião acabou por imbuir os dogmas, por vários séculos.

Hypatia, 1885, by Charles William Mitchell (1854 - 1903) Representação de Hipátia, por Charles William Mitchell, filósofa, cientista e educadora de Alexandria, brutalmente assassinada por partidários do arcebispo de Alexandria, Cirilo, que com conchas de abalone separaram-lhe a carne do osso. A maioria dos seus trabalhos foram queimados, os que sobreviveram foram um legado importantíssimo para a filosofia e ciências. Apesar disso o seu nome foi esquecido e Cirilo acabou santificado. Começara a Idade das Trevas.

A incitação da ciência nos últimos três séculos, continuou muito do trabalho interrompido pela destruição da Biblioteca de Alexandria (sabe-se lá em que pé estaríamos hoje se tivéssemos acesso a uma pequena parte do seu conteúdo que foi destruído), e de um grande número de homens, e  algumas mulheres, que se acharam a encarar os obscurantismos das suas épocas, pagando, não raras vezes, com a sua vida. A ciência, felizmente, é uma linguagem dinâmica, Seguindo, por outro lado, hoje, os mesmos princípios fundamentais da ciência de Eratóstenes, no que se agora resume como o método científico, baseando-se, sinteticamente, em duas regras fundamentais, que sempre chocaram com o espírito humano: o de não haver verdades absolutas - todas as asserções devem ser cuidadosamente examinadas com espírito crítico - e, que tudo aquilo que entra em contradição com os factos deve ser afastado e revisto.

Espantado com o céu que nos cobre, preenchido com mais de 100 biliões de estrelas, o homem, e depois cientista Carl Sagan, arrasta-nos para uma viagem de descoberta da nossa espécie, da sua evolução, da rocha em que habitámos, dos astros que nos acompanham, até às estrelas mais distantes, todas elas, obedecendo escrupulosamente às mesmas constantes físicas da natureza, constituídas pelos menos elementos químicos, que milhares de milhões de anos de evolução molecular, levaram ao aparecimento de vida no nosso planeta, tal e qual como a conhecemos.

“O céu foi feito pela vida”

Rosette_ballauer_nebulosaNebulosa Roseta, constituída essencialmente por hidrogénio, átomo fundamental e base da evolução da vida na Terra.

Sagan é particularmente eficaz na persuasão do seu grande objectivo, da mensagem que levou a todos os cantos do planeta - da ideia da nossa “cidadania cósmica”, de uma existência que temos de deixar de encarar narcisicamente, mas sim como parte que é do próprio cosmos que toma consciência de si.

Entusiasta das viagens e da comunicação para lá das estrelas, dos postos de escuta do espaço, levada a cabo, nos nossos dias, por centenas de observatórios por todo o mundo, defendia, baseado em premissas científicas, a existência de vida noutro sítio do Universo, ainda que fosse de um tipo diferente da nossa. Em 100 biliões de estrelas, poderá haver, segundo os seus cálculos, até 1 milhão de civilizações. A milhões de anos de existência, ou mesmo já aqui ao lado, na estrela mais próxima do Sol, a Alfa Centauro, poderá existir realidades tão ou mais complexas, civilizações técnicas como a nossa, que sujeitas às mesmas leis universais da natureza, procurarão, por certo, em determinada altura, os seus vizinhos no espaço.

Mas mesmo que a Terra possa ser o único planeta com vida no Universo, nesse caso, a nossa responsabilidade de não nos destruirmos, a nós próprios e ao planeta em que habitámos, de combatermos as nossas “paixões reptilianas”, é ainda mais premente. Devemos isso, no limite, ao acaso da conjugação perfeita de condições que nos permitiu aspirar ao que somos e ao que já conseguimos alcançar.

“Os mundos são preciosos"

earthTerra vista da Lua. Foto tirada durante a missão Apolo 11.

O ano Internacional da Astronomia, que se está a festejar, é um bom motivo para encontrar a obra de Carl Sagan, um apaixonado pela astronomia e pela vida.

Cosmos é a sua obra maior. Brilhantemente explícita, de leitura fácil e com uma linguagem acessível e clara a todos, mesmo para aqueles para quem a ciência não lhes diz nada. Sagan tem o talento de nos falar, não só ao intelecto, mas, principalmente ao coração, apelando ao homem e à sua humanidade, à busca pela descoberta da consciência e do espírito humano, dos verdadeiros valores que nos devem nortear, e da nossa responsabilidade e relação com os outros, com o nosso planeta e com universo…, com o cosmos – tudo o que existe, existiu e existirá.

quinta-feira, setembro 10, 2009

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A Quinta dos Animais de George Orwell (1945)

cp-quinta

“0s animais diante da janela olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos, e novamente dos porcos para os homens: mas era já impossível distingui-los uns dos outros.”

A Quinta dos Animais, Animal Farm, no título original, ou o Triunfo dos Porcos, como ficou mais conhecido em Portugal, é uma fábula criada por George Orwell, nos anos 40, como metáfora ao mito soviético vivido na Inglaterra do pós-guerra. Orwell acreditava no socialismo, não como modelo teórico, mas como consequência prática das desigualdades entre os homens. Precisamente, Orwell viu o desvirtuar dos seus ideais, na evolução da revolução socialista, culminar na bárbara e ditatorial União Soviética de Estaline, e na Guerra Civil Espanhola, na qual participou.

Nesta história, os animais de uma quinta revoltam-se contra o seu proprietário humano, incentivados pelas ideia revolucionária dos porcos - todos os animais deveriam ser considerados como iguais, e livres da tirania do Homem.

A harmonia inicial entre os animais, estabelecida por uma série de princípios a que os porcos chamaram “Animalismo”, resumida em 7 mandamentos, é lentamente substituída pela hierarquização e tecnocracia imposta pelos porcos, que, dissimuladamente, assumem a liderança da quinta, por força da sua superioridade intelectual, a que nenhum outro animal se consegue impor.

Remetidos a um papel de chefia, sem nada de concreto realmente fazerem, os porcos começam a adoptar, lentamente, virtudes humanas, que com o tempo, astúcia e indefectíveis exortações, vão logrando os outros animais, até, finalmente se equilibrarem em duas patas, adquirirem vícios humanos e, resumirem os princípios do Animalismo num só:

Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.        

Ler esta pequena história de Orwell é ler uma exímia alegoria à revolução russa, entre os anos de 1917 e 1943, uma sátira que mascara os principais actores políticos – Karl Marx, Lenine, Trotsky, Estaline –, os vários sectores da sociedade russa – a igreja ortodoxa, o proletariado –, os seus vizinhos, aliados e beligerantes – a Alemanha Nazi, o mundo ocidental –, reduzindo um país a uma quinta e o mundo a uma vila e, uma pertença fatalidade biológica a um vício fatal do homem pelo despotismo, mesmo quando este, aparentemente, parte dos mais nobres princípios.

d0fbde0c0865224b_landing Estaline, ditador russo, líder da União Soviética e um dos principais alvos das críticas de Orwell.

Mas o que encerra esta fábula, vai muito mais para além da analogia com um período da história mundial, e da crítica acérrima ao estado soviético e ao seu partido único – o partido comunista –, evoca, sem proselitismos, a força da propaganda e das armadilhas do discurso como meio de persuasão dos menos preparados, e portanto, mais fracos – hoje em dia, mais do que nunca, a principal arma ao serviço da política.

domingo, agosto 16, 2009

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Aprender a rezar na Era da Técnica de Gonçalo M. Tavares (2007)

capa aprender a rezar

“O medo é o mistério que a velocidade esconde.”

Já todos nós estivemos, por vários motivos, em fila. Imaginem, portanto, essa fila, ou então, uma qualquer fila de homens, ordenada, estruturada sob o jugo de uma regra, ou várias, impelindo cada um dos membros a manter a sua posição, cumprindo cada um o seu papel, no seu devido lugar. Lenz Buchmann, o doutor Lenz Buchmann, conceituado cirurgião, com o bisturi na sua mão direita, como que dissolvido no corpo dos seus doentes operados, domina espantosamente a técnica, conhece os limites e os seus adversários, e repudia homens em fila, homens que não disfarçam a mediocridade que revelam ao estar em fila.

Quarto e último livro de Gonçalo M. Tavares, da tetralogia: O Reino. Aprender a Rezar na Era da Técnica, impõe-nos o mistério do movimento que nos modela e nos obriga a tomar a força, num despique entre essas duas forças, à primeira vista antagónicas, entre a natureza, desconhecida e imutável e os mecanismos da técnica que norteiam o domínio humano e modelam de forma misteriosa esta “estupidez neutra” - a rudeza física de existir.

Lucian freud.reflection Auto-retrato de Lucian Freud.

A força, a doença e a morte, são três capítulos de uma vida, de várias vidas, de todas as vida, da de Lenz Buchmann em particular, descrita pela mão de Gonçalo M. Tavares. Lenz Buchmann, o conceituado cirurgião, estava ciente do ponto de ruptura a que o homem chegou com a natureza, uma natureza ainda no ponto zero e sem história – não havia uma única diferença histórica entre o vento que nos bate hoje na cara e aquele que tocara no rosto de um imperador romano – a batalhar com o homem pelo mesmo espaço, num combate sem trincheiras, sob os nossos pés e cabeças, reivindicando uma desobediência que nem sempre nos é tolerável. Lenz cumpre o seu papel, como bom soldado que é, combatendo esse material pouco visível, quase transparente – a doença, a matéria invisível do mal, que domestica de forma cínica os órgãos e as mesmas células de que eram compostas as grandes vontades, decisões e acções do passado: a mesma matéria com outra organização. Lenz é um soldado do lado dos homens, consciente do seu lugar, mas afastado do sofrimento individual, a compaixão era para si “(…)uma ferramenta inútil para a existência, que tecnicamente nada resolve(…)”.

No entanto, para Lenz Buchmann, a vida não é apenas um somatório de acções e acontecimentos, a vida pressupõem também operações de energia semelhantes à subtracção, multiplicação e divisão. É do grande verbo humano fazer - que claramente separou o homem da formiga, do cão ou das plantas –, que surge o movimento, o movimento de ataque, resultante do medo que arranca as coisas da sua imobilidade, ou do medo ainda mais poderoso, que mantém as coisas em movimento. A política surge para Lenz como a forma mais fácil e eficaz de alterar, consertar e controlar a ordem imposta pela normalidade, uma grande operação colectiva, que coloca milhares de vidas debaixo do seu bisturi. É o poder que permite a força, auxiliada pela técnica da máquina; máquina que não entende o lúdico nem o trágico, apenas a direcção de uma certa força e de um certo movimento, declarando as suas duas maiores capacidades: a explosão e a precisão. A explosão que instala a desordem, o pânico na ordem, e a precisão capaz de endireitar os desvios a essa mesma ordem.

É a religião que ousa afirmar que o que em ti é mais digno não te pertence – o Espírito, mas é o homem, sozinho, que mais facilmente se alheia de si próprio, até percorrer, sem dar por isso, caminhos por meios que não os do seu mundo.

domingo, julho 19, 2009

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1808 de Laurentino Gomes (2007)

1808

“Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil.”

Laurentino Gomes, jornalista brasileiro e autor deste bestseller, resumiu dez anos de investigação jornalística, apoiada em trabalhos de dezenas de historiadores e bibliófilos, livros, fontes impressas e electrónicas, correspondências e relatos, de um acontecimento único na história de dois territórios separados por um oceano, mas unidos pelo destino de um pequeno país, com pouco mais de 3 milhões de habitantes, e dono de um império colonial espalhado por três continentes.

A primazia deste livro está, precisamente, nos relatos e na contextualização histórica de um período que transformou uma colónia num país independente e numa potência mundial; na descrição da vida e das personagens burlescas da corte portuguesa, na chegada a uma terra estranha – terra de escravos, contrabandistas e gente sem refinamento. As cartas do arquivista real Luiz Joaquim dos Santos Marrocos são a fonte mais preciosa deste livro sobre a fuga dos reis, a vida da colónia e das personagens burlescas que constituíam a corte portuguesa, assim como a transformação que se operou nas gentes e naquele território dos trópicos, durante os 13 anos da presença da família real portuguesa.

Em 1807, Portugal já era um dos países mais atrasados da Europa, em vários aspectos: a metrópole vivia parasitária das suas colónias, assente numa economia de consumo e num mercado extractivista e mercantilista; a igreja católica tinha um peso decisivo na vida política e social – Portugal foi o último país a abolir os autos a Inquisição –, as novas ideias libertárias e reformas políticas não encontravam espaço num regime de monarquia absoluta, já caduco na Europa. Portugal foi também o último país europeu a abolir o tráfego de escravos e a assegurar a liberdade de expressão e os direitos individuais. Ao invés, a Europa, já vivia no fervor da Revolução Industrial, na explosão da tecnologia e das artes novas, na busca das grandes descobertas intelectuais, que acabaram por culminar, por exemplo, em descobertas para a ciência ainda hoje de enorme relevância.

joaocarlota Retrato de D. João VI e D. Carlota Joaquina de Manuel Dias de Oliveira

Portugal neste período era governado por D.João VI, príncipe regente, em substituição de sua mãe, D. Maria I – a primeira mulher a ocupar  o trono português -, uma pobre louca que vivia encarcerada no Palácio de Queluz, rodeada de fervores religiosos. D. José, seu filho primogénito e herdeiro do trono, morreu anos antes de varíola graças à proibição de sua mãe aos médicos de lhe aplicar uma vacina, uma vez que esta achava que a decisão entre a vida e a morte cabia apenas a Deus. D. Maria I foi também a principal responsável pela interrupção do único e breve período de reformas políticas, sociais e estruturais, levadas a cabo pelo ministro todo-poderoso de seu pai, o marquês de Pombal, marginalizado pela rainha e obrigado a manter desta uma distância mínima de 110 quilómetros.

Nesta altura, já o mundo ocidental tinha um novo senhor: Napoleão Bonaparte, autoproclamado imperador de França, depois da Revolução Francesa. Um pequeno sujeito que subjugou reis, rainhas, príncipes e duques, dinastias de séculos, substituindo-os por membros da sua própria família, desde a Prússia, até a Escandinávia e o pontificado romano. Napoleão tinha os exércitos mais rápidos e ágeis da Europa, facilmente mobilizados e sustentados pela sua nova França -industrial e com inovadores técnicas agrícolas, que permitiram, em poucas décadas, uma explosão demográfica e uma estabilidade fundamental para as importantes reformas Napoleónicas (o saneamento financeiro de uma França arruinado por uma monarquia ultra-despesista, a adopção do sistema métrico e o código napoleónico, ainda hoje a base do sistema jurídico francês e de muitos outros países).

Embarque de D.joãoEmbarque de D. João, príncipe regente de Portugal, para o Brasil, em 27 de Novembro de 1807 de Nicolas Louis Albert Delerive.

Foi o terror pelo exército de Napoleão que levou D.João VI, e toda a corte portuguesa, a realizar o inédito – abandonar o seu país e rumar ao trópicos, numa fuga à pressa, sob protecção Inglesa, o antigo aliado. Este acontecimento único, revelou a fraqueza de um príncipe fraco e medroso, tanto mais, que o exército comando pelo general Junot, aquando da sua entrada em Lisboa, ainda com os navios que levavam a corte para o Brasil à vista, era já um amontoado de maltrapilhos e famintos, desgastados pela dureza da marcha forçada e das emboscadas armadas pela débil e espontânea resistência portuguesa. D. João VI podia facilmente ter vencido a invasão – se tivesse tido coragem. Mas, a história está cheia de acasos, fazendo-se mesmo sem se dar conta disso. Este movimento, surpreendeu o próprio Napoleão, que sobre D. João VI escreveu nas suas memórias: “Foi o único que me enganou.”

D. João VI, sem querer, acabou por ser decisivo na construção, na América do Sul, de um império e de uma nacionalidade, transformando uma colónia amorfa, num país gigantesco e unido, ao contrário do que aconteceu com os seus vizinhos da América espanhola. Laurentino Gomes dá-nos todos os detalhes dos acontecimentos, da vida, dos modos e da importância do confronto de dois mundos - um passado, velho e ultrapassado e o novo, da prosperidade e da transformação, ajudando-nos a perceber o porquê de, mais tarde, D.Pedro I do Brasil, filho de D. João VI, libertasse o famoso grito do Ipiranga.

cordpedro 001A coroação de D. Pedro I do Brasil de Debret.

segunda-feira, julho 13, 2009


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Unhas Negras de João da Silva Correia (1953)


Unhas negras é a obra prima de João da Silva Correia, escritor português do século XX. Eram conhecidos como unhas negras, negras dos vapores, corantes e ácidos manuseados para o fabrico dos chapéus, apesar de tudo não menos negras que as próprias vidas destes homens. Nesta obra são outurgadas as agruras e misérias dos operários da indústria da chapelaria do início do século XX, no atrasado início da industrialização portuguesa. Acima deste trabalho verdadeiramente desumano, com descrições a roçar à noção terrena de inferno (quais condenados envoltos em fornalhas ardentes), eleva-se ainda a injusteza de uma sociedade completamente desprovida de sentido humano e social. É neste cenário que encontramos os vários personagens-chave da obra, que personificam os dramas sociais destes homens: desde as condições precárias das habitações, as familias numerosas, os filhos famintos e doentes, a epidemia da tuberculose, até ao fatalismo do desamparo na velhice. Histórias baseadas na realidade, com alusão ao histórico episódio do "assalto" à Fábrica Nova, hoje Museu da Indústria da Chapelaria em S. João da Madeira, episódio trágico em que centenas de operários se revoltaram contra a maquinização da indústria e a eventual perda de postos de trabalho.

Com uma escrita complexa, João da Silva Correia é de facto um literato dotado, é notória a influência realista e descritiva de Camilo, Eça, Ferreira de Castro e Dostoievsky, a que o autor junta as sua forma engraçada de descrever as coisas, bem como expressionismos hilariantes da região de S. João da Madeira. Esta é a base para uma amálgama de histórias cruas e tocantes. Recordo com especial ternura o personagem Tomás, um rapazola desfigurado por uma doença óssea, mas que movia o mundo a tocar a sua concertina. Ou do seu pai Gonçalo Pimpão, no limiar das forças, na sua luta desumana para não perder o parco sustento. Ou do rapazito que ia levar a merenda ao pai e, faminto, via o pai comer sem nada poder tirar. Não esquecendo ainda o sonho da vida de Gervásio Baptista, de ir, veja-se, às festas do S. João em Braga... São histórias que João da Silva Correia assistiu, vidas mergulhadas num sofrimento mudo, partilhadas por um povo humilde, no limiar da sustentabilidade humana, que o autor quis homenagear. É o tributo-mor a todos estes seres humanos anónimos que perderam a vida no suor do trabalho, sem mais não ver da vida que a aldeia em que nasceram, uma terra que, inexplicavelmente, tanto amaram, e desse amor acabaria por nascer uma vila, e um concelho, e uma cidade. É S. João da Madeira.


"...mergulhando e tornando a mergulhar as mãos já escaldadas e de unhas negras calamitosas na água a ferver - faziam lembrar de certo modo painel de alminhas do purgatório, em que há braços contorcionados e expressões de súplicas alucinadas, parêntises de martírio e de agonia sem par, entre chamas impiedosas que purificam, pelo sofrimento, os raros eleitos da eterna bem-aventurança."


S. João da Madeira, hoje, a segunda maior cidade do distrito de Aveiro, com 22 mil habitantes. No início do século XX, S. João da Madeira era uma aldeia com cerca de 4000 habitantes, e pertencente a Oliveira de Azeméis. Os são-joanenses (ou sanjoanenses) eram (ainda muitos se hão-de recordar!) conhecidos como unhas negras, termo devido às unhas sujas dos operários das inúmeras fábricas de chapéus da aldeia. Foi a esta pujança industrial, bairrismo e empreendedorismo das suas gentes que se deveu a politicamente surpreendente emancipação municipal de 11 de Outubro de 1926. Hoje resta apenas uma fábrica de chapéus, a Fepsa, apesar de tudo produtora de quase um terço dos chapéus produzidos anualmente em todo o mundo!

terça-feira, maio 26, 2009

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 Viagem ao Fim do Império de Martz Inura (2008)


O segundo romance do escritor português Martz Inura transporta-nos ao pesado passado do final da guerra colonial. Apesar de tão marcante para a história de Portugal, este é, efectivamente, um tema ainda pouco explorado, talvez por se constituir ainda como ferida bem viva e sangrante na alma de muitos portugueses, como reconhece o próprio autor. Inspirando-se nos títulos de Júlio Verne, a história do livro coloca-nos ao lado de Ivo Soares, um capitão miliciano, "feito à pressa", "em laboratório", para comandar um grupo operacional nos recônditos do enclave de Cabinda. 

Cidade de Cabinda
São estes dois anos, desterrado num isolamento profundo e num cenário de guerra em que à partida não acredita, o ponto de partida para o drama deste capitão inexperiente: a vida promissora que deixou na "metrópole", o peso esmagador das decisões, a responsabilidade pela vida de milhares de homens, os seus medos, pesadelos e conflitos interiores. Pode-se extrapolar do livro este sentimento global do que foi servir Portugal na guerra colonial, desde a desmotivação, as dificuldades, privações até aos receios e perigos que estes homens foram forçados para servir, o melhor que puderam, os interesses do país e durante tanto tempo. Provêm de todos os pontos do país, são mestres de variadíssimos ofícios, donos de personalidades e traquejos diferentes, mas juntos, formam esta massa caracterizadora da simplicidade do povo português, ali bem retratada no livro. Alguns aprenderam lá a ler, outros até a "comer de faca e garfo", retrato paradigma da situação de miséria do país. Apesar de tudo, apreende-se que a guerra abriu os horizontes a muitos daqueles homens, contribuindo para o grande êxodo emigracional. A obra, não obstante o pesado tema, é longe de ser lúgrube. O humor está bem presente ao longo da narrativa, surgindo de várias expressões engraçadas, episódios sórdidos, brincadeiras caricatas, ou até do português "arranhado" de alguns autócnes. A relação destes com os portugueses era, de resto, salvo excepções, plenamente harmoniosa, mesmo de sincera amizade. Muito do sucesso da missão deve-se, sabe bem Ivo Soares, ao estabelecer de amistosas relações com os habitantes locais, retratatos genuidade e filosofia de vida invejáveis. Efectivamente, a obra ressalva bem o facto de, verdadeiramente, não se ter vivido lá uma situação de guerra, mas sim de guerrilha (aquilo que hoje se designaria facilmente de terrorismo).


É um livro de guerra e de amor, um amor inevitável e inebriante, perigoso, pincelado até por certos indícios de tragédia. No entanto, mais que esta dualidade cativante, o autor percorre os mais importantes factos históricos e enriquece-os com uma dimensão psico-social. É notória a intenção de Martz Inura em vincar ali o "desmoronar de uma certa ideia de Portugal" com mais de 500 anos de existência, e o início de uma nova página para o país. Termina o romance de forma surpreendente e precisamente no eclodir e euforia do 25 de Abril de 1974. É um livro fictício, embora se saiba que muitos dos episódios ali relatados aconteceram mesmo, memórias vivas da experiência de Martz Inura nessa mesma guerra, e que aumentam sobremaneira a tensão da leitura. Não se sabe, até que ponto, este não será um livro auto-biográfico do autor. 

Todos estes atributos tornam "Viagem ao Fim do Império" uma jornada enriquecedora, sendo possível retirar dela interessantes ilações e, até, lições, a vários níveis, desse ainda período-tabu da história portuguesa. Contextualiza-o, dissecando-o sob várias dimensões humanas. Não terá o fulgor ou originalidade literária da obra anterior "Um Sonho Secular", o próprio autor reconhece que esta obra "pouco ou nada acrescenta à literatura portuguesa", mas contém o talento desta escrita fluída, cativante e sonoramente rica, imagens de marca de Martz Inura, e que lhe valeram, com esta obra, o prémio literário João da Silva Correia.

quarta-feira, maio 13, 2009

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Os Crimes da Rua Morgue (1841); O Mistério de Marie Rogêt (1842);

A Carta Roubada (1844), de Edgar Allan Poe

Os Crimes da rua morgue e outras historias

O nome de Edgar Allan Poe (1809 –1849), só não é sinónimo de engenho por má vontade de estilo, pela compreensível ignorância do restrito saber individual, e, porque a palavra engenho apareceu muito antes do conjunto das três primeiras identificarem o norte-americano responsável, não por um estilo, mas vários, transversais a dois séculos de literatura e a milhares de anos de existência de usança humana.

Edgar Allan Poe's Illustrated Bio.0

Como todos nós, Poe experimentou o sentimento de perda, mas, ao contrário da maioria de nós, essa sensibilidade levou-o à aptidão pela ruína. O jogo e o álcool acabou por levá-lo num delírio que lhe consumiu a mente. Após a morte da mulher, o delírio sobejou-se à vida, morrendo em 1849, em loucura. O imaginário da sua obra poética é envolta pelo místico e pela procura da beleza – o único objectivo digno de esforço de um poeta, como defendia. Esta estética foi incompreendida pelos seus contemporâneos, mas acabou por ter, mais tarde, um grande eco na poesia francesa (Baudelaire, Mallarmé) e no nosso Fernando Pessoa. Como prosador criou uma série de contos de mistério e horror. Os três contos do título enquadram-se num outro grupo. Introduziram um novo género à literatura mundial: os policiais, ou as depois chamadas - histórias de detectives (até aí a palavra detective não existia). Os Crimes da Rua Morgue é a primeira obra policial conhecida, baseada num estilo literário assente na lógica rigorosa e na dedução intelectual.

Na altura em que Poe escreve os seus contos policiais, a violência e o crime urbano espalhavam-se por toda a América, e aumentavam de uma forma que as próprias forças policias sentiam-se impotentes para o travar e compreender. Os periódicos da altura, faziam sucesso a reportar e descrever os crimes de sangue durante semanas e meses, sem pejo de dar voz a todo o tipo de opinadores. Poe acabou por beber muita da sua influência neste tipo de relatos, com os quais se divertiu a desconstruir e a subverter as suas teorias, tanto pela lógica, aparentemente imediata e à distância de todos, apesar de encoberta por sofismas, como pela análise de detalhes físicos, à partida mal interpretados pelos investigadores e, pela sua própria e insofismável interpretação, do comportamento humano.

“… as coincidências constituem barreiras intransponíveis no caminho dos pensadores que foram educados para ignorar a teoria das probabilidades, à qual os objectivos mais gloriosos da investigação humana são devedores da sua não menos gloriosa descoberta.”

Monsieur C. Auguste Dupin é o cavalheiro (o tal primeiro detective por acaso, que nada tem a ver com as forças policiais), presente nos três contos, dono de uma peculiar perspicácia e de uma capacidade analítica fora do vulgar. São estas virtudes, na realidade, as de Poe, que o levam a desconstruir as charadas que se apresentam nos três contos, aparentemente, três crimes inexplicáveis. A partir daqui começa uma das reflexões de Poe – exteriores aos casos - sobre os assuntos fora dos limites das simples regras, nos quais a perícia do analista se revela em todo o seu fulgor, o que o distingue dos usuais investigadores policiais, muito agarrados ao método e com uma intervenção excessivamente processual. Porque nem sempre só no pormenor está a verdade, e, porque dois motivos, cada um com um dado valor, não têm, necessariamente, um valor, quando unidos, igual à soma das suas componentes isoladas. Daqui surge uma das conclusões finais do Crime da Rua Morgue: a sabedoria da maioria dos homens reconhecidamente inteligentes, não tem alicerces. Está toda na cabeça e não tem corpo, sendo demasiados astuciosos para serem profundos, o que leva à inevitável propensão humana para nier ce qui est et d’expliquer ce qui n’est pas (negar o que existe e explicar o que não existe).

Edgar Allan Poe's Illustrated Bio.

No Crime da Rua Morgue, duas mulheres, mãe e filha, são encontradas mortas em casa. Os vizinhos ouvindo uma sucessão de gritos horríveis ocorrem ao prédio e enquanto arrombam a porta da frente e sobem as escadas para atingir o quarto andar do apartamento das vítimas, ouvem duas vozes, alegadamente, dos assassinos - uma voz aguda que nenhuma das testemunhas unanimemente conseguiram identificar o dialecto e outra rouca, de um francês. O cenário com que se depararam, já mergulhado num silêncio sepulcral e trancado por dentro, era o que mais próximo se pode imaginar do inferno – na sala encontrava-se o corpo da filha preso de cabeça para baixo, na chaminé da lareira, duas ou três longas espessas madeixas de cabelos grisalhos, empapados no chão, em sangue ao lado de uma navalha de barba. No pátio das traseiras, jazia o cadáver da mãe, degolada de forma tão perfeita que a cabeça se separara do tronco. Dupin entra em cena depois de ler os relatos dos vários periódicos e da polícia acusar um indivíduo que Dupin acredita enfaticamente que é inocente.

mystery_of_marie_rogetNo Mistério de Marie Rogêt, baseado num assassínio de uma jovem, Mary Cecilia Rogers, assassinada nas proximidades de Nova Iorque, desaparecida durante vários dias e depois encontrada morta no rio, segue uma linha paralela entre a ficção e a realidade que, apesar de Poe desenvolver o seu texto e conclusões longe do teatro da atrocidade, recorrendo apenas aos meios de investigação que os jornais forneciam, muito depois da publicação, a maioria dos pormenores principais e a conclusão geral acabaram por se vir a confirmar. A isto não é indiferente o cuidado com o rigor da análise científica levada a cabo por Poe, como disso é exemplo a sua justificação do cadáver apenas ter feito a sua aparição à superfície uma semana depois, desfazendo teorias avançadas pela imprensa sensacionalista, mais preocupada em estabelecer um ponto de vista, do que defender a causa da verdade.

O último conto, “A Carta Roubada”, o único crime que não é de sangue, um ladrão, o ministro D…, apodera-se de um manuscrito de uma personagem da mais alta hierarquia política, à sua frente, sem que esta pudesse fazer o que fosse, o que faculta ao seu detentor um ascendente sobre a ilustre personagem cuja idoneidade e paz de espírito perigam seriamente. Neste caso, é o próprio inspector da polícia que procura Dupin, depois do sucesso das suas excêntricas investigações nos casos anteriores. Com a garantia de já ter movido todas as diligências, oficiosas e não oficiosas, de revista e estudo de toda a vida e todos os cantos onde o ministro D… pudesse ter guardado a carta furtada, sem sucesso de a encontrar, só Dupin parece ser capaz de a rever, da forma mais simples e depreendida que a complexidade do comum deixa olvidar.

Estes três contos são mais alguns pedaços da grande influência de Poe, o inventivo, o verdadeiro criador, tão humano como qualquer um de nós, mas pelo esmero da feitura singularmente habilidosa, mais perto da divindade do que muitos ícones orados. O homem agradece, a arte agradece.

quarta-feira, abril 29, 2009

Ler, mais que ver 389x152 A Ciganita de Miguel de Cervantes (1613)

A Ciganita - Miguel Cervantes

“Os ciganos e as ciganas, parece, vieram a este mundo só para serem ladrões; nascem de pais ladrões, criam-se entre ladrões, estudam para ladrões e, finalmente, saem-se ladrões sabidos em qualquer situação e o desejo de roubar e o facto de roubar são, neles, acidentes inseparáveis, que só perdem quando morrem.”

Inserindo-se na compilação: Novelas Exemplares", “A Ciganita” é o maior dos 12 contos elaborados por Cervantes, pequenas histórias político-sociais da Espanha renascentista. Cervantes é mais conhecido pela sua famosa obra: Dom Quixote de La Mancha, enobrecida como uma das mais importantes obras da literatura mundial. Não obstante isso, Miguel de Cervantes não se furtou a registar o seu olhar perspicaz em várias dinâmicas sociais; no caso a apresentar, nos itinerantes grupos ciganos e na nobreza do princípio do século XVII.

A prerrogativa de Cervantes começa no seu estilo de prosa: elaborada, tem uma dimensão poética única, dona de um ritmo muito próprio, elevando-se como uma melodia, tal e qual uma canção com uma harmonia musical universal. A ironia e a ambiguidade são as constante transversais nos textos de Cervantes, sempre repicados de um astuto ridículo, transformando a mensagem numa divertida comédia jocosa, sem nunca ser flagrante.cervantes portraitEste conto é particularmente marcado pelo idealismo, também este uma marca do estilo de Cervantes. Preciosa é a pequena cigana, encantadora, tanto pelos seus atributos de beleza, como pela formosura das suas cantigas, enfeitiçando todas as  gentes com as suas virtudes. Dona de um espírito livre, pouco comum entre os da sua etnia, leva André Cavaleiro, um jovem fidalgo, a abdicar da sua vida de nobre e seguir a vida cigana, para provar o seu amor por Preciosa.

DEHODENCQ, Alfred (Paris, 1822 – Paris, 1882)

No interesse da narrativa encontra-se entrincheiradas uma série de questões morais que vão para além do contexto histórico em que Cervantes a escreve, estendendo-se até à actualidade. Para lá de uma evidente história de amor, temos um par de personagens que iludem o próprio destino, contradizendo o estereótipo e o arquétipo  dos grupos a que pertencem, libertando-se dos rótulos a que o sujeito está imposto, por pertencer a um determinado grupo social. Uma lição desconceituada de um espanhol da idade moderna.

Para os menos atentos, o perfil irónico de Cervantes pode levar a conclusões erróneas, se olhado superficialmente. Mas, a sua poética, acaba por deixar a  descoberto as virtudes individuais da liberdade moral, da obsessão, da nobreza espiritual e da honra, principalmente, quando estas assentam numa consciência e em princípios morais bem delineados, infelizmente, pouco habituais à grande maioria dos homens. 

P.S: Para terem uma ideia da influência que o estilo de Cervantes pode imprimir na escrita de alguém, ver a novela inacabada Amendoins com Azeite XXX, escrita por Nimpo, um registo ficcional das aventuras e desventuras de Lord Pilinhitas e Belica del Toboso. Arde nos olhos, mas queima no coração.