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domingo, janeiro 03, 2010

Robert Musil #2

Robert_Musil_1918

“Há uma fase na vida em que esta abranda de forma nítida, como se hesitasse entre continuar ou alterar o seu rumo. É possível que nesta fase seja mais fácil o azar vir ao nosso encontro.”

segunda-feira, dezembro 28, 2009

Deixa do Aleixo #3

2515187896_497d2beeaa Eu não tenho vistas largas,
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.

quarta-feira, dezembro 16, 2009

Robert Musil #1

Aproveitando a deixa do Shihan, inicio aqui um ciclo de citações de uma obra grandessíssima e complexa, mas que me está a dar um capricho especial a ler, pela forma lenta como a leio (sabe-se lá porquê).



Todas as profissões, quando não as exercemos por dinheiro, mas por amor, chega um momento em que o passar dos anos nos parece levar a um vazio.


Robert Musil, "O Homem sem Qualidades"

segunda-feira, dezembro 14, 2009

Deixa do Aleixo #2

cavacosilva_oliveiracosta

Sei que pareço um ladrão...
mas há muitos que eu conheço
que, não parecendo o que são,
são aquilo que eu pareço.

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Deixa do Aleixo #1

antonio-aleixo

Não sou particularmente sensível a poesia, gosto dos Pessoas da mesma forma que gosto de marisco – como, e até o podia fazer todos os dias, mas sei que me acabaria por fazer mal, deixar-me indisposto e, possivelmente, encurtar a felicidade na minha vida.

Há ainda a Natália Correia, mas se tivesse de escolher um poeta, como meu predilecto, ele seria sem dúvida António Aleixo, o poeta algarvio, dito iletrado, sentencioso, de ironia sagaz, compôs versos à volta de acontecimentos e de manifestações humanas, em que qualquer um de nós se revê.

A partir de hoje há mais um espaço nos Amendoins - A Deixa do Aleixo é uma forma de partilharmos as palavras deste poeta, as quais tenho muitas vezes presentes comigo, como é o caso destas:

“Para não fazeres ofensas

E teres dias felizes,

Não digas tudo o que pensas,

Mas pensa tudo o que dizes.”

sábado, outubro 17, 2009

Receita para fazer o Azul

Boudin, Eugène - White Clouds, Blue Sky

“Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas a s cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.”

Nuno Júdice

quinta-feira, setembro 24, 2009

Ler, mais que ver 389x152 

Cosmos de Carl Sagan (1980)

cosmos

“Se um ser humano te desagrada, deixa-o viver. Em 100 mil milhões de galáxias não encontrarás outro igual.”

Sejam bem-vindos a conhecer, ou a redescobrir, uma das maiores e mais intimistas obras de divulgação científica, do astrónomo, pedagogo e incansável divulgador de ciência, Carl Sagan.

Cosmos é a sua obra mais conhecida, livro, que mais tarde, deu lugar a uma famosa série televisiva, com o mesmo nome. Além de divulgador de ciência Carl Sagan foi autor de vários romances de ficção científica e teve um papel importante nas missões de exploração Mariner, e da Viking 1 e Viking 2, da NASA.

Nos capítulos “Blues por um Planeta Vermelho” e “Relatos de Viajantes”, descreve pormenorizadamente estas missões, a sua importância e os dados novos que trouxeram para o conhecimento dos nossos planetas vizinhos mais próximos, mas também o caminho feito até lá anteriormente, pelas missões soviéticas e pela missão Voyager aos planetas mais externos do sistema solar - Júpiter e Saturno, Úrano, Neptuno e Plutão.

Io-voyager1 Imagem de Io, a maior lua de Júpiter, obtida pela missão Voyager 1.

Nas mais de 450 páginas, que preenchem o livro, encontramos bem mais do que meros relatos de exploração espacial; é-nos apresentada uma lição entusiasmante sobre a procura de respostas à intrínseca curiosidade do homem, ao longo dos séculos, por tudo o que nos rodeia. De Eratóstenes a Copérnico, passando por Kepler, Galileu, Newton e Einstein, percorremos os séculos, as interrogações e os trabalhos que nos levaram até à posição que ocupamos agora.

Para Carl Sagan o nosso destino é o conhecimento, e a verdadeira importância do nosso mundo está na coragem das nossas perguntas e profundidade das nossas respostas. As perguntas, como descreve, começaram desde que o homem olhou para o céu; as principais respostas começaram a ser encontradas no séc. III a.C, naquele que foi o maior centro mundial de comércio, cultura e saber – a cidade de Alexandria. Mas o declínio do saber, no mundo antigo, veio de dentro da própria Alexandria. A sua, inicialmente, maior impulsionadora, a filosofia, censurou-a mais tarde, com o seu desprezo pelo prático - Platão incitava os seus seguidores a não perderem tempo na observação, centrando-se apenas no pensar; Aristóteles defendeu que os de classe mais baixa, e por isso inferiores, deviam estar sempre sob o mando de um dono, o que para Benjamin Farrington, historiador de ciência, justifica o declínio da ciência no mundo antigo. A tradição mercantil e esclavagista fomentou o desprezo do trabalho manual pelas elites – a ciência faz-se de trabalho manual –, a riqueza e o poder eram obtidos pela posse de escravos, a ociosidade diligenciou a insipiência e a religião acabou por imbuir os dogmas, por vários séculos.

Hypatia, 1885, by Charles William Mitchell (1854 - 1903) Representação de Hipátia, por Charles William Mitchell, filósofa, cientista e educadora de Alexandria, brutalmente assassinada por partidários do arcebispo de Alexandria, Cirilo, que com conchas de abalone separaram-lhe a carne do osso. A maioria dos seus trabalhos foram queimados, os que sobreviveram foram um legado importantíssimo para a filosofia e ciências. Apesar disso o seu nome foi esquecido e Cirilo acabou santificado. Começara a Idade das Trevas.

A incitação da ciência nos últimos três séculos, continuou muito do trabalho interrompido pela destruição da Biblioteca de Alexandria (sabe-se lá em que pé estaríamos hoje se tivéssemos acesso a uma pequena parte do seu conteúdo que foi destruído), e de um grande número de homens, e  algumas mulheres, que se acharam a encarar os obscurantismos das suas épocas, pagando, não raras vezes, com a sua vida. A ciência, felizmente, é uma linguagem dinâmica, Seguindo, por outro lado, hoje, os mesmos princípios fundamentais da ciência de Eratóstenes, no que se agora resume como o método científico, baseando-se, sinteticamente, em duas regras fundamentais, que sempre chocaram com o espírito humano: o de não haver verdades absolutas - todas as asserções devem ser cuidadosamente examinadas com espírito crítico - e, que tudo aquilo que entra em contradição com os factos deve ser afastado e revisto.

Espantado com o céu que nos cobre, preenchido com mais de 100 biliões de estrelas, o homem, e depois cientista Carl Sagan, arrasta-nos para uma viagem de descoberta da nossa espécie, da sua evolução, da rocha em que habitámos, dos astros que nos acompanham, até às estrelas mais distantes, todas elas, obedecendo escrupulosamente às mesmas constantes físicas da natureza, constituídas pelos menos elementos químicos, que milhares de milhões de anos de evolução molecular, levaram ao aparecimento de vida no nosso planeta, tal e qual como a conhecemos.

“O céu foi feito pela vida”

Rosette_ballauer_nebulosaNebulosa Roseta, constituída essencialmente por hidrogénio, átomo fundamental e base da evolução da vida na Terra.

Sagan é particularmente eficaz na persuasão do seu grande objectivo, da mensagem que levou a todos os cantos do planeta - da ideia da nossa “cidadania cósmica”, de uma existência que temos de deixar de encarar narcisicamente, mas sim como parte que é do próprio cosmos que toma consciência de si.

Entusiasta das viagens e da comunicação para lá das estrelas, dos postos de escuta do espaço, levada a cabo, nos nossos dias, por centenas de observatórios por todo o mundo, defendia, baseado em premissas científicas, a existência de vida noutro sítio do Universo, ainda que fosse de um tipo diferente da nossa. Em 100 biliões de estrelas, poderá haver, segundo os seus cálculos, até 1 milhão de civilizações. A milhões de anos de existência, ou mesmo já aqui ao lado, na estrela mais próxima do Sol, a Alfa Centauro, poderá existir realidades tão ou mais complexas, civilizações técnicas como a nossa, que sujeitas às mesmas leis universais da natureza, procurarão, por certo, em determinada altura, os seus vizinhos no espaço.

Mas mesmo que a Terra possa ser o único planeta com vida no Universo, nesse caso, a nossa responsabilidade de não nos destruirmos, a nós próprios e ao planeta em que habitámos, de combatermos as nossas “paixões reptilianas”, é ainda mais premente. Devemos isso, no limite, ao acaso da conjugação perfeita de condições que nos permitiu aspirar ao que somos e ao que já conseguimos alcançar.

“Os mundos são preciosos"

earthTerra vista da Lua. Foto tirada durante a missão Apolo 11.

O ano Internacional da Astronomia, que se está a festejar, é um bom motivo para encontrar a obra de Carl Sagan, um apaixonado pela astronomia e pela vida.

Cosmos é a sua obra maior. Brilhantemente explícita, de leitura fácil e com uma linguagem acessível e clara a todos, mesmo para aqueles para quem a ciência não lhes diz nada. Sagan tem o talento de nos falar, não só ao intelecto, mas, principalmente ao coração, apelando ao homem e à sua humanidade, à busca pela descoberta da consciência e do espírito humano, dos verdadeiros valores que nos devem nortear, e da nossa responsabilidade e relação com os outros, com o nosso planeta e com universo…, com o cosmos – tudo o que existe, existiu e existirá.

sábado, setembro 12, 2009

Os fuzilamentos de três de Maio, por Goya.

The 3rd of May 1808 in Madrid the executions on Principe Pio hill (1814)s

Durante as invasões Napoleónicas, na Península Ibérica, uma série de revoltas populares levaram ao fuzilamento de centenas de pessoas. Goya, em 1814, representou uma dessas macabras cenas, popularizando o dia seguinte ao 2 de Maio de 1808 (representado também noutro famoso quadro de Goya), quando, em Madrid, um grupo de insurgentes atacou uma escolta de soldados mamelucos – soldados egípcios da guarda imperial de Napoleão I.

O terrível detalhe da morte, num local inóspito e desolado, o pormenor das faces dos condenados, mostrando medo, resignação e desespero, em contraste, com o anonimato dos carrascos, representados de costas para o espectador, mostra a força da violência da imagem deixada por Goya, uma imagem repetida um pouco por toda a Península Ibérica, durante as as invasões napoleónicas, inclusivamente, na vila de Arrifana, no dia 17 de Abril de 1809. 

O poeta, crítico e ensaísta Jorge de Sena escreveu um poema, de título: Carta a meus filhos, a propósito deste quadro de Goya, que continuará a merecer toda a actualidade, pelo menos, enquanto o homem se conhecer tal como é.

CARTA A MEUS FILHOS
Sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena

Esta é também uma forma de celebrar o regresso, a Portugal, do corpo de um alguém que nele habitou, e que prevaleceu para além do litigar.

quinta-feira, setembro 10, 2009

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A Quinta dos Animais de George Orwell (1945)

cp-quinta

“0s animais diante da janela olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos, e novamente dos porcos para os homens: mas era já impossível distingui-los uns dos outros.”

A Quinta dos Animais, Animal Farm, no título original, ou o Triunfo dos Porcos, como ficou mais conhecido em Portugal, é uma fábula criada por George Orwell, nos anos 40, como metáfora ao mito soviético vivido na Inglaterra do pós-guerra. Orwell acreditava no socialismo, não como modelo teórico, mas como consequência prática das desigualdades entre os homens. Precisamente, Orwell viu o desvirtuar dos seus ideais, na evolução da revolução socialista, culminar na bárbara e ditatorial União Soviética de Estaline, e na Guerra Civil Espanhola, na qual participou.

Nesta história, os animais de uma quinta revoltam-se contra o seu proprietário humano, incentivados pelas ideia revolucionária dos porcos - todos os animais deveriam ser considerados como iguais, e livres da tirania do Homem.

A harmonia inicial entre os animais, estabelecida por uma série de princípios a que os porcos chamaram “Animalismo”, resumida em 7 mandamentos, é lentamente substituída pela hierarquização e tecnocracia imposta pelos porcos, que, dissimuladamente, assumem a liderança da quinta, por força da sua superioridade intelectual, a que nenhum outro animal se consegue impor.

Remetidos a um papel de chefia, sem nada de concreto realmente fazerem, os porcos começam a adoptar, lentamente, virtudes humanas, que com o tempo, astúcia e indefectíveis exortações, vão logrando os outros animais, até, finalmente se equilibrarem em duas patas, adquirirem vícios humanos e, resumirem os princípios do Animalismo num só:

Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.        

Ler esta pequena história de Orwell é ler uma exímia alegoria à revolução russa, entre os anos de 1917 e 1943, uma sátira que mascara os principais actores políticos – Karl Marx, Lenine, Trotsky, Estaline –, os vários sectores da sociedade russa – a igreja ortodoxa, o proletariado –, os seus vizinhos, aliados e beligerantes – a Alemanha Nazi, o mundo ocidental –, reduzindo um país a uma quinta e o mundo a uma vila e, uma pertença fatalidade biológica a um vício fatal do homem pelo despotismo, mesmo quando este, aparentemente, parte dos mais nobres princípios.

d0fbde0c0865224b_landing Estaline, ditador russo, líder da União Soviética e um dos principais alvos das críticas de Orwell.

Mas o que encerra esta fábula, vai muito mais para além da analogia com um período da história mundial, e da crítica acérrima ao estado soviético e ao seu partido único – o partido comunista –, evoca, sem proselitismos, a força da propaganda e das armadilhas do discurso como meio de persuasão dos menos preparados, e portanto, mais fracos – hoje em dia, mais do que nunca, a principal arma ao serviço da política.

domingo, agosto 16, 2009

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Aprender a rezar na Era da Técnica de Gonçalo M. Tavares (2007)

capa aprender a rezar

“O medo é o mistério que a velocidade esconde.”

Já todos nós estivemos, por vários motivos, em fila. Imaginem, portanto, essa fila, ou então, uma qualquer fila de homens, ordenada, estruturada sob o jugo de uma regra, ou várias, impelindo cada um dos membros a manter a sua posição, cumprindo cada um o seu papel, no seu devido lugar. Lenz Buchmann, o doutor Lenz Buchmann, conceituado cirurgião, com o bisturi na sua mão direita, como que dissolvido no corpo dos seus doentes operados, domina espantosamente a técnica, conhece os limites e os seus adversários, e repudia homens em fila, homens que não disfarçam a mediocridade que revelam ao estar em fila.

Quarto e último livro de Gonçalo M. Tavares, da tetralogia: O Reino. Aprender a Rezar na Era da Técnica, impõe-nos o mistério do movimento que nos modela e nos obriga a tomar a força, num despique entre essas duas forças, à primeira vista antagónicas, entre a natureza, desconhecida e imutável e os mecanismos da técnica que norteiam o domínio humano e modelam de forma misteriosa esta “estupidez neutra” - a rudeza física de existir.

Lucian freud.reflection Auto-retrato de Lucian Freud.

A força, a doença e a morte, são três capítulos de uma vida, de várias vidas, de todas as vida, da de Lenz Buchmann em particular, descrita pela mão de Gonçalo M. Tavares. Lenz Buchmann, o conceituado cirurgião, estava ciente do ponto de ruptura a que o homem chegou com a natureza, uma natureza ainda no ponto zero e sem história – não havia uma única diferença histórica entre o vento que nos bate hoje na cara e aquele que tocara no rosto de um imperador romano – a batalhar com o homem pelo mesmo espaço, num combate sem trincheiras, sob os nossos pés e cabeças, reivindicando uma desobediência que nem sempre nos é tolerável. Lenz cumpre o seu papel, como bom soldado que é, combatendo esse material pouco visível, quase transparente – a doença, a matéria invisível do mal, que domestica de forma cínica os órgãos e as mesmas células de que eram compostas as grandes vontades, decisões e acções do passado: a mesma matéria com outra organização. Lenz é um soldado do lado dos homens, consciente do seu lugar, mas afastado do sofrimento individual, a compaixão era para si “(…)uma ferramenta inútil para a existência, que tecnicamente nada resolve(…)”.

No entanto, para Lenz Buchmann, a vida não é apenas um somatório de acções e acontecimentos, a vida pressupõem também operações de energia semelhantes à subtracção, multiplicação e divisão. É do grande verbo humano fazer - que claramente separou o homem da formiga, do cão ou das plantas –, que surge o movimento, o movimento de ataque, resultante do medo que arranca as coisas da sua imobilidade, ou do medo ainda mais poderoso, que mantém as coisas em movimento. A política surge para Lenz como a forma mais fácil e eficaz de alterar, consertar e controlar a ordem imposta pela normalidade, uma grande operação colectiva, que coloca milhares de vidas debaixo do seu bisturi. É o poder que permite a força, auxiliada pela técnica da máquina; máquina que não entende o lúdico nem o trágico, apenas a direcção de uma certa força e de um certo movimento, declarando as suas duas maiores capacidades: a explosão e a precisão. A explosão que instala a desordem, o pânico na ordem, e a precisão capaz de endireitar os desvios a essa mesma ordem.

É a religião que ousa afirmar que o que em ti é mais digno não te pertence – o Espírito, mas é o homem, sozinho, que mais facilmente se alheia de si próprio, até percorrer, sem dar por isso, caminhos por meios que não os do seu mundo.

domingo, julho 19, 2009

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1808 de Laurentino Gomes (2007)

1808

“Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil.”

Laurentino Gomes, jornalista brasileiro e autor deste bestseller, resumiu dez anos de investigação jornalística, apoiada em trabalhos de dezenas de historiadores e bibliófilos, livros, fontes impressas e electrónicas, correspondências e relatos, de um acontecimento único na história de dois territórios separados por um oceano, mas unidos pelo destino de um pequeno país, com pouco mais de 3 milhões de habitantes, e dono de um império colonial espalhado por três continentes.

A primazia deste livro está, precisamente, nos relatos e na contextualização histórica de um período que transformou uma colónia num país independente e numa potência mundial; na descrição da vida e das personagens burlescas da corte portuguesa, na chegada a uma terra estranha – terra de escravos, contrabandistas e gente sem refinamento. As cartas do arquivista real Luiz Joaquim dos Santos Marrocos são a fonte mais preciosa deste livro sobre a fuga dos reis, a vida da colónia e das personagens burlescas que constituíam a corte portuguesa, assim como a transformação que se operou nas gentes e naquele território dos trópicos, durante os 13 anos da presença da família real portuguesa.

Em 1807, Portugal já era um dos países mais atrasados da Europa, em vários aspectos: a metrópole vivia parasitária das suas colónias, assente numa economia de consumo e num mercado extractivista e mercantilista; a igreja católica tinha um peso decisivo na vida política e social – Portugal foi o último país a abolir os autos a Inquisição –, as novas ideias libertárias e reformas políticas não encontravam espaço num regime de monarquia absoluta, já caduco na Europa. Portugal foi também o último país europeu a abolir o tráfego de escravos e a assegurar a liberdade de expressão e os direitos individuais. Ao invés, a Europa, já vivia no fervor da Revolução Industrial, na explosão da tecnologia e das artes novas, na busca das grandes descobertas intelectuais, que acabaram por culminar, por exemplo, em descobertas para a ciência ainda hoje de enorme relevância.

joaocarlota Retrato de D. João VI e D. Carlota Joaquina de Manuel Dias de Oliveira

Portugal neste período era governado por D.João VI, príncipe regente, em substituição de sua mãe, D. Maria I – a primeira mulher a ocupar  o trono português -, uma pobre louca que vivia encarcerada no Palácio de Queluz, rodeada de fervores religiosos. D. José, seu filho primogénito e herdeiro do trono, morreu anos antes de varíola graças à proibição de sua mãe aos médicos de lhe aplicar uma vacina, uma vez que esta achava que a decisão entre a vida e a morte cabia apenas a Deus. D. Maria I foi também a principal responsável pela interrupção do único e breve período de reformas políticas, sociais e estruturais, levadas a cabo pelo ministro todo-poderoso de seu pai, o marquês de Pombal, marginalizado pela rainha e obrigado a manter desta uma distância mínima de 110 quilómetros.

Nesta altura, já o mundo ocidental tinha um novo senhor: Napoleão Bonaparte, autoproclamado imperador de França, depois da Revolução Francesa. Um pequeno sujeito que subjugou reis, rainhas, príncipes e duques, dinastias de séculos, substituindo-os por membros da sua própria família, desde a Prússia, até a Escandinávia e o pontificado romano. Napoleão tinha os exércitos mais rápidos e ágeis da Europa, facilmente mobilizados e sustentados pela sua nova França -industrial e com inovadores técnicas agrícolas, que permitiram, em poucas décadas, uma explosão demográfica e uma estabilidade fundamental para as importantes reformas Napoleónicas (o saneamento financeiro de uma França arruinado por uma monarquia ultra-despesista, a adopção do sistema métrico e o código napoleónico, ainda hoje a base do sistema jurídico francês e de muitos outros países).

Embarque de D.joãoEmbarque de D. João, príncipe regente de Portugal, para o Brasil, em 27 de Novembro de 1807 de Nicolas Louis Albert Delerive.

Foi o terror pelo exército de Napoleão que levou D.João VI, e toda a corte portuguesa, a realizar o inédito – abandonar o seu país e rumar ao trópicos, numa fuga à pressa, sob protecção Inglesa, o antigo aliado. Este acontecimento único, revelou a fraqueza de um príncipe fraco e medroso, tanto mais, que o exército comando pelo general Junot, aquando da sua entrada em Lisboa, ainda com os navios que levavam a corte para o Brasil à vista, era já um amontoado de maltrapilhos e famintos, desgastados pela dureza da marcha forçada e das emboscadas armadas pela débil e espontânea resistência portuguesa. D. João VI podia facilmente ter vencido a invasão – se tivesse tido coragem. Mas, a história está cheia de acasos, fazendo-se mesmo sem se dar conta disso. Este movimento, surpreendeu o próprio Napoleão, que sobre D. João VI escreveu nas suas memórias: “Foi o único que me enganou.”

D. João VI, sem querer, acabou por ser decisivo na construção, na América do Sul, de um império e de uma nacionalidade, transformando uma colónia amorfa, num país gigantesco e unido, ao contrário do que aconteceu com os seus vizinhos da América espanhola. Laurentino Gomes dá-nos todos os detalhes dos acontecimentos, da vida, dos modos e da importância do confronto de dois mundos - um passado, velho e ultrapassado e o novo, da prosperidade e da transformação, ajudando-nos a perceber o porquê de, mais tarde, D.Pedro I do Brasil, filho de D. João VI, libertasse o famoso grito do Ipiranga.

cordpedro 001A coroação de D. Pedro I do Brasil de Debret.

quarta-feira, maio 13, 2009

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Os Crimes da Rua Morgue (1841); O Mistério de Marie Rogêt (1842);

A Carta Roubada (1844), de Edgar Allan Poe

Os Crimes da rua morgue e outras historias

O nome de Edgar Allan Poe (1809 –1849), só não é sinónimo de engenho por má vontade de estilo, pela compreensível ignorância do restrito saber individual, e, porque a palavra engenho apareceu muito antes do conjunto das três primeiras identificarem o norte-americano responsável, não por um estilo, mas vários, transversais a dois séculos de literatura e a milhares de anos de existência de usança humana.

Edgar Allan Poe's Illustrated Bio.0

Como todos nós, Poe experimentou o sentimento de perda, mas, ao contrário da maioria de nós, essa sensibilidade levou-o à aptidão pela ruína. O jogo e o álcool acabou por levá-lo num delírio que lhe consumiu a mente. Após a morte da mulher, o delírio sobejou-se à vida, morrendo em 1849, em loucura. O imaginário da sua obra poética é envolta pelo místico e pela procura da beleza – o único objectivo digno de esforço de um poeta, como defendia. Esta estética foi incompreendida pelos seus contemporâneos, mas acabou por ter, mais tarde, um grande eco na poesia francesa (Baudelaire, Mallarmé) e no nosso Fernando Pessoa. Como prosador criou uma série de contos de mistério e horror. Os três contos do título enquadram-se num outro grupo. Introduziram um novo género à literatura mundial: os policiais, ou as depois chamadas - histórias de detectives (até aí a palavra detective não existia). Os Crimes da Rua Morgue é a primeira obra policial conhecida, baseada num estilo literário assente na lógica rigorosa e na dedução intelectual.

Na altura em que Poe escreve os seus contos policiais, a violência e o crime urbano espalhavam-se por toda a América, e aumentavam de uma forma que as próprias forças policias sentiam-se impotentes para o travar e compreender. Os periódicos da altura, faziam sucesso a reportar e descrever os crimes de sangue durante semanas e meses, sem pejo de dar voz a todo o tipo de opinadores. Poe acabou por beber muita da sua influência neste tipo de relatos, com os quais se divertiu a desconstruir e a subverter as suas teorias, tanto pela lógica, aparentemente imediata e à distância de todos, apesar de encoberta por sofismas, como pela análise de detalhes físicos, à partida mal interpretados pelos investigadores e, pela sua própria e insofismável interpretação, do comportamento humano.

“… as coincidências constituem barreiras intransponíveis no caminho dos pensadores que foram educados para ignorar a teoria das probabilidades, à qual os objectivos mais gloriosos da investigação humana são devedores da sua não menos gloriosa descoberta.”

Monsieur C. Auguste Dupin é o cavalheiro (o tal primeiro detective por acaso, que nada tem a ver com as forças policiais), presente nos três contos, dono de uma peculiar perspicácia e de uma capacidade analítica fora do vulgar. São estas virtudes, na realidade, as de Poe, que o levam a desconstruir as charadas que se apresentam nos três contos, aparentemente, três crimes inexplicáveis. A partir daqui começa uma das reflexões de Poe – exteriores aos casos - sobre os assuntos fora dos limites das simples regras, nos quais a perícia do analista se revela em todo o seu fulgor, o que o distingue dos usuais investigadores policiais, muito agarrados ao método e com uma intervenção excessivamente processual. Porque nem sempre só no pormenor está a verdade, e, porque dois motivos, cada um com um dado valor, não têm, necessariamente, um valor, quando unidos, igual à soma das suas componentes isoladas. Daqui surge uma das conclusões finais do Crime da Rua Morgue: a sabedoria da maioria dos homens reconhecidamente inteligentes, não tem alicerces. Está toda na cabeça e não tem corpo, sendo demasiados astuciosos para serem profundos, o que leva à inevitável propensão humana para nier ce qui est et d’expliquer ce qui n’est pas (negar o que existe e explicar o que não existe).

Edgar Allan Poe's Illustrated Bio.

No Crime da Rua Morgue, duas mulheres, mãe e filha, são encontradas mortas em casa. Os vizinhos ouvindo uma sucessão de gritos horríveis ocorrem ao prédio e enquanto arrombam a porta da frente e sobem as escadas para atingir o quarto andar do apartamento das vítimas, ouvem duas vozes, alegadamente, dos assassinos - uma voz aguda que nenhuma das testemunhas unanimemente conseguiram identificar o dialecto e outra rouca, de um francês. O cenário com que se depararam, já mergulhado num silêncio sepulcral e trancado por dentro, era o que mais próximo se pode imaginar do inferno – na sala encontrava-se o corpo da filha preso de cabeça para baixo, na chaminé da lareira, duas ou três longas espessas madeixas de cabelos grisalhos, empapados no chão, em sangue ao lado de uma navalha de barba. No pátio das traseiras, jazia o cadáver da mãe, degolada de forma tão perfeita que a cabeça se separara do tronco. Dupin entra em cena depois de ler os relatos dos vários periódicos e da polícia acusar um indivíduo que Dupin acredita enfaticamente que é inocente.

mystery_of_marie_rogetNo Mistério de Marie Rogêt, baseado num assassínio de uma jovem, Mary Cecilia Rogers, assassinada nas proximidades de Nova Iorque, desaparecida durante vários dias e depois encontrada morta no rio, segue uma linha paralela entre a ficção e a realidade que, apesar de Poe desenvolver o seu texto e conclusões longe do teatro da atrocidade, recorrendo apenas aos meios de investigação que os jornais forneciam, muito depois da publicação, a maioria dos pormenores principais e a conclusão geral acabaram por se vir a confirmar. A isto não é indiferente o cuidado com o rigor da análise científica levada a cabo por Poe, como disso é exemplo a sua justificação do cadáver apenas ter feito a sua aparição à superfície uma semana depois, desfazendo teorias avançadas pela imprensa sensacionalista, mais preocupada em estabelecer um ponto de vista, do que defender a causa da verdade.

O último conto, “A Carta Roubada”, o único crime que não é de sangue, um ladrão, o ministro D…, apodera-se de um manuscrito de uma personagem da mais alta hierarquia política, à sua frente, sem que esta pudesse fazer o que fosse, o que faculta ao seu detentor um ascendente sobre a ilustre personagem cuja idoneidade e paz de espírito perigam seriamente. Neste caso, é o próprio inspector da polícia que procura Dupin, depois do sucesso das suas excêntricas investigações nos casos anteriores. Com a garantia de já ter movido todas as diligências, oficiosas e não oficiosas, de revista e estudo de toda a vida e todos os cantos onde o ministro D… pudesse ter guardado a carta furtada, sem sucesso de a encontrar, só Dupin parece ser capaz de a rever, da forma mais simples e depreendida que a complexidade do comum deixa olvidar.

Estes três contos são mais alguns pedaços da grande influência de Poe, o inventivo, o verdadeiro criador, tão humano como qualquer um de nós, mas pelo esmero da feitura singularmente habilidosa, mais perto da divindade do que muitos ícones orados. O homem agradece, a arte agradece.

quarta-feira, abril 29, 2009

Ler, mais que ver 389x152 A Ciganita de Miguel de Cervantes (1613)

A Ciganita - Miguel Cervantes

“Os ciganos e as ciganas, parece, vieram a este mundo só para serem ladrões; nascem de pais ladrões, criam-se entre ladrões, estudam para ladrões e, finalmente, saem-se ladrões sabidos em qualquer situação e o desejo de roubar e o facto de roubar são, neles, acidentes inseparáveis, que só perdem quando morrem.”

Inserindo-se na compilação: Novelas Exemplares", “A Ciganita” é o maior dos 12 contos elaborados por Cervantes, pequenas histórias político-sociais da Espanha renascentista. Cervantes é mais conhecido pela sua famosa obra: Dom Quixote de La Mancha, enobrecida como uma das mais importantes obras da literatura mundial. Não obstante isso, Miguel de Cervantes não se furtou a registar o seu olhar perspicaz em várias dinâmicas sociais; no caso a apresentar, nos itinerantes grupos ciganos e na nobreza do princípio do século XVII.

A prerrogativa de Cervantes começa no seu estilo de prosa: elaborada, tem uma dimensão poética única, dona de um ritmo muito próprio, elevando-se como uma melodia, tal e qual uma canção com uma harmonia musical universal. A ironia e a ambiguidade são as constante transversais nos textos de Cervantes, sempre repicados de um astuto ridículo, transformando a mensagem numa divertida comédia jocosa, sem nunca ser flagrante.cervantes portraitEste conto é particularmente marcado pelo idealismo, também este uma marca do estilo de Cervantes. Preciosa é a pequena cigana, encantadora, tanto pelos seus atributos de beleza, como pela formosura das suas cantigas, enfeitiçando todas as  gentes com as suas virtudes. Dona de um espírito livre, pouco comum entre os da sua etnia, leva André Cavaleiro, um jovem fidalgo, a abdicar da sua vida de nobre e seguir a vida cigana, para provar o seu amor por Preciosa.

DEHODENCQ, Alfred (Paris, 1822 – Paris, 1882)

No interesse da narrativa encontra-se entrincheiradas uma série de questões morais que vão para além do contexto histórico em que Cervantes a escreve, estendendo-se até à actualidade. Para lá de uma evidente história de amor, temos um par de personagens que iludem o próprio destino, contradizendo o estereótipo e o arquétipo  dos grupos a que pertencem, libertando-se dos rótulos a que o sujeito está imposto, por pertencer a um determinado grupo social. Uma lição desconceituada de um espanhol da idade moderna.

Para os menos atentos, o perfil irónico de Cervantes pode levar a conclusões erróneas, se olhado superficialmente. Mas, a sua poética, acaba por deixar a  descoberto as virtudes individuais da liberdade moral, da obsessão, da nobreza espiritual e da honra, principalmente, quando estas assentam numa consciência e em princípios morais bem delineados, infelizmente, pouco habituais à grande maioria dos homens. 

P.S: Para terem uma ideia da influência que o estilo de Cervantes pode imprimir na escrita de alguém, ver a novela inacabada Amendoins com Azeite XXX, escrita por Nimpo, um registo ficcional das aventuras e desventuras de Lord Pilinhitas e Belica del Toboso. Arde nos olhos, mas queima no coração.

quinta-feira, março 12, 2009

Ler, mais que ver

Jerusalém de Gonçalo M. Tavares (2004)

Jerusalém

Jerusalém, encruzilhar de civilizações e de culturas, palco de horrores e motivo de outros tantos; terra santa por força de definição, ali confluem crenças e esperanças, ali foi entregue e reconhecido pela comunidade internacional a capital de estado do povo historicamente mais perseguido e alvo dos maiores e mais frequentes horrores por parte de outros povos. Jerusalém de Gonçalo M. Tavares, é também o chão, o espaço da existência humana, da sua dor, dos seus horrores, do medo e da maldade, das loucura transversais a todos os homens, povos, raças, sociedades, em diferentes períodos de tempo e nos contextos mais diversos.

Gonçalo M. Tavares, jovem escritor português, é dos mais originais romancistas portugueses. Apesar da sua juventude – 38 anos, tem já uma “extensa” obra publicada, editada e traduzida em vários países, sendo fonte de inspiração para obras de artistas plásticos e peças de teatro. Jerusalém, insere-se na tetralogia “O Reino”, concedendo-lhe já vários prémios literários; recentemente foi nomeado para o Cévennes Prize 2008, que distingue o melhor romance europeu, publicado em França.

gonçalo M. Tavares

Sob o ideal do mal, a tetralogia “O Reino”; o reino do homem, Jerusalém, abre caminho a um circuito fechado a percorrer pelo leitor. Um circuito circular desenhado por Mylia - esquizofrénica, internada como louca pelo seu médico e marido Theodor Busbeck - investigador reputado, que busca a fórmula que resume as causas da maldade que existe sem o medo, essa maldade terrível; quase não humana porque não justificada. Mylia dá à luz Kaas, rapaz de pernas frágeis, adoptado por Theodor Busbeck e filho biológico de Ernst, louco, deficiente físico e companheiro de Mylia na clínica. Hanna, a prostituta frequenta a casa de Hinnerk Obst, o homem que guarda uma pistola na parte da frente das calças e tem medo dos outros. Todos são assim colocados à mesma distância. À distância de um mesmo ponto, do centro onde habita a dor, a insanidade, o medo, o pensamento moral, o aceitável e o inaceitável, convergindo para uma noite. A noite em que a matéria muda à velocidade da sua diferença, a urina a mais no corpo dói, a temperatura da noite alarga os ossos, e em que tudo começa e tudo acaba.

black glassYanni Stratoudaki – Black glass

“Quem comete um erro é excluído; é fechado dentro de uma caixa. Quem está fora vê apenas a caixa. Mas quem está fechado, excluído, consegue ver cá para fora. Vê tudo, vê-nos a todos.

Em cada compartimento há dezenas de caixas. Milhares de caixas por todo o lado. A maior parte delas vazia. Outras têm lá dentro pessoas excluídas. Ninguém sabe quais as caixas que têm pessoas.

As caixas são tantas que ninguém lhes dá importância. Pode estar lá uma pessoa, até a que amas, mas nem olhas. Já não produzem efeito. Passas por elas centenas de vezes.”

sábado, março 07, 2009

A escritora Deana Barroqueiro, autora do livro: "O Navegador da Passagem", teve a amabilidade de deixar um comentário às palavras que aqui deixámos sobre o seu trabalho, e que passo a transcrever:

Não sei se chegou a receber o meu comentário, por isso lho escrevo de novo.
Venho agradecer-lhe o generoso comentário que fez no seu blogue ao meu romance O Navegador da Passagem, pois sinto-me felicíssima por ver que tenho na bloguesfera um grupo cada vez mais numeroso de leitores dos meus romances.

Embora seja autora de 9 romances históricos e de 2 livros de contos (além de outras obras no âmbito da minha profissão de professora de Literatura), como não pertenço aos circuitos dos media ou das associações de escritores e publicava numa pequena editora que não dava visibilidade à minha obra, apesar de ter os contos traduzidos e publicados em várias línguas, aqui em Portugal pouca gente me conhecia.
Porém, quando em 2006 a Porto Editora escolheu o meu romance D. Sebastião e o Vidente para se lançar na ficção, deu-me essa visibilidade que é imprescindível para que um livro chegue aos leitores. O prémio da Máxima também ajudou, como é óbvio.

No entanto, o que me agrada mais de todas estas referências, por serem mais genuínas e espontâneas, são as dos blogues. É como se um amigo recomendasse a outro a leitura de uma obra que lhe agradou e isso não há publicidade que pague! Nem maior elogio, para mim.
Por isso, meu caro leitor, muito, muito obrigada! Sinto-me recompensada pelos 2 anos de trabalho que me levou este livro a investigar e a escrever (não contando com outros tantos anos em que escrevi os dois livros de aventuras - Uraçá, o Índio Branco e O Cometa - que tratavam do mesmo tema e me serviram de base para O Navegador da Passagem, e mais quinze de estudo deste período dos Descobrimentos que já tinha para o meu trabalho de escrita criativa com os meus alunos).
Na minha página http://deanabarroqueiro.blogspot.com disponibilizei o Uraçá em download gratuito para os meus leitores, porque ele completa a vida de algumas personagens de O Navegador da Passagem, desvendando mesmo o mistério do "grumete da cicatriz".

Assim, bem haja e boas leituras!
Com um abraço virtual de uma autora muito grata
Deana Barroqueiro

quinta-feira, março 05, 2009

Ler, mais que ver

Os Maias – Episódios da vida romântica

de Eça de Queirós (1888)

Os Maias

Chega a uma determinada altura da nossa instrução, e somos obrigados a ler determinadas obras para a disciplina de português, precisamente na fase da nossa vida em que temos a cabeça cheia de outros interesses que não a leitura de histórias de um senhor do outro século; e logo histórias de 700 páginas preenchidas de letras bem mais minúsculas do que as da Hobby Consolas, ou da Bravo (para a versão feminina). É um verdadeiro atentado esta imposição absurda ao tempo - já de si curto –, da adolescência. Muito a sério, já conhecemos bem os não resultados da imposição de leituras de obras reputadas, extensíssimas e descontextualizadas dos programas curriculares: poucos são os que as lêem - refugiando-se no famosos resumos -, e aqueles que o fazem, a muito custo, porque querem ir para medicina, pouco na sua essência aproveitam.

Os Maias de Eça de Queirós é um dos desses exemplos. Depois de relido por iniciativa própria e já com outra maturidade, é um maná imperdível para os apreciadores deste género de literatura.

eçaJosé Maria de Eça de Queirós, o maior romancista português de todos os tempos, viveu em pleno século XIX, nos anos do chique e dos francesismos, do diletantismo ocioso aristocrata, na decadência de um Portugal a meio gás, a ver a Europa e Estados Unidos da América, a viver o fervor da revolução industrial.

Eça assistiu de perto a este definhar da sociedade portuguesa. Por muitas vezes se insurgiu contra esta decadência - os seus romances e crónicas, são a materialização do seu desassossego, mesmo ao serviço do estado (como administrador de distrito e cônsul), bateu-se contra o estado das coisas. Rendido à sua impotência como estadista, não hesitou em parodiar e depreciar a política e os cargos políticos por toda a sua obra e nas suas habituais crónicas de magazine.

A prosa de Eça é ágil, minuciosa, detalhada, assombrosamente actual; as suas tragédias românticas: críticas, satíricas, carregadas de humor lacónico. Os Maias, inserem-se nesta grande feição, ao lado do Primo Basílio, A Tragédia da Rua das Flores e o Crime do Padre Amaro.

Edvard MunchEve on Karl Johan de Edvard Munch

A família Maia, que dá o nome à obra, uma família Beirã, rica, de grandes tradições, é o centro de toda a narrativa. Afonso da Maia é o patriarca da família, vê a sua mulher, religiosa fervorosa, a criar o seu filho Pedro da Maia nas aflições da pureza e castidade. Impotente perante a força da debilidade de sua mulher, Afonso vê Pedro crescer como um fraco, e como adulto a ser arrebatado por um amor dúbio, findado em tragédia. Afonso, sozinho com o seu neto Carlos da Maia (personagem principal), cria-o fora dos rituais de educação proteccionista e religiosos da época, tornando Carlos um indivíduo diferenciado, forte e culto (ao contrário de Eusébiozinho, rapaz da mesma idade de Carlos, e a antítese deste, aos 7 anos já a declamar versos de cabeça, embrulhado no xaile da mãe). Carlos forma-se em medicina e torna-se um dandy da sociedade lisboeta, ocupa-se de várias senhoras até se apaixonar por Maria Eduarda, paixão que finda em tragédia; como toda a história dos Maias, que haviam decido habitar o seu casarão em Lisboa – o Ramalhete.

A história é rica, vasta, habitada de dezenas de personagens, todas caracterizadas metodicamente, representando as principais classes sociais da época, com particular incidência sobre a classe média e alta, numa sociedade emergida em snobismo, aristocratas, poetas ébrios e decadentes, políticos ambiciosos e pretensiosos socialités. Quase tão importante quanto um Maia, João da Ega, o melhor amigo de Carlos da Maia, é daquelas personagens imortais e únicas, proclama filosofias, ideais, leis, teorias, modas, ciências e estilos, ao longo do romance, enriquecendo a narrativa em debates com outras personagens caracterizadoras das correntes de pensamento da época, e, por isso, não menos interessantes.

dandies Os Maias, é o maior reflexo do espelho queirosiano da sociedade Portuguesa dos finais do século XIX, uma implícita análise crítica à aristocracia, à monarquia, à igreja católica, ao buraco em que o país se enterrava e continuou a enterrar, mas, também, ao sentido do rumo individual do homem literato.

“Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduziria da experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear… Não se abandonar a uma esperança – nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada que se chama o Eu ir-se deteriorando e decompondo até reentrar-se perder no infinito do Universo… Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.”

sábado, fevereiro 28, 2009


Por quem os sinos dobram
de Ernest Hemingway (1940)



O contexto.



Década de 30 do século XX, guerra civil espanhola. Um confronto terrível que contribuiu para o acumular de tensões políticas esquerda-direita que acabariam por desencadear a 2ª Guerra Mundial.  De um lado, os Republicanos, no poder há poucos anos após o fim da Monarquia absolutista e em dificuldades político-económico-sociais resultantes do crash económico 1929, apoiados pelo México e União Soviética; do outro lado, os Nacionalistas, apoiados pela Alemanha, Itália e por Portugal. Um pequeno golpe de estado militar à República no poder que acabaria por gerar uma chaga de proporções surreais:  mais de 500.000 mil mortos e a instituição, durante décadas, do regime opressivo extrema-direita de Franco. Este confronto sanguinário vincaria o estilo de dois dos maiores artistas de sempre, Picasso e Salvador Dali.


Premonição de Salvador Dali.


Batalha de Guernica, de Pablo Picasso.

O homem.

A guerra civil espanhola originou uma atenção mediática sem precedentes até à altura. Observadores de todo o mundo dirigiram-se ao local para reportarem as novidades, União Soviética, EUA, Alemanha e Itália testavam novos aviões, armas e maquinarias de guerra - todos os olhos do mundo estavam virados para a Península Ibérica. Como se a península fosse cobaia de uma medição de forças internacional. É neste contexto que Ernest Hemingway se tornou grande conhecedor do conflito, fruto de estadia vários anos em Espanha como jornalista/observador americano.



O livro.

A estadia vários anos em território espanhol associado à personalidade de Hemingway, levaram-no a conhecer profundamente o carácter do povo espanhol, gerando nele uma marca de profunda admiração que muitas vezes não escondeu. A história coloca-nos ao lado de um oficial americano, Robert Jordan, designado para a missão de fazer explodir uma ponte em pleno território nacionalista (fascista). Aqui tem que estabelecer contactos com os guerrilheiros locais, um grupo liderado por uma mulher de carácter vincado, Pilar, para o ajudarem na missão. 

A vinda de Jordan é um pronúncio do fim da harmonia que esse pequeno grupo de rebeldes vive, no aparente anonimato, nos meandros de uma gruta em pleno território fascista. O americano acaba por descobrir neste grupo vários sentimentos característicos do povo pensinsular, fazendo-o sentir mais vivo - desde a amizade, a alegria e o humor na adversidade, até ao amor. O carácter amistoso e ao mesmo irascível e precipitado do povo espanhol é caracterizado de forma brilhante na escrita fluente e cheia de expressões locais cómicas. 

O livro lida fundamentalmente com o tema morte e o valor da vida humana na guerra. Desde o momento em que aceita a missão que Jordan sabe que não sobreviverá a ela. Uma missão que nem sabe sequer qual o seu real propósito, se não será apenas uma jogada de diversão orquestrada por um general aborrecido e sem escrúpulos - se a sua vida valerá a missão que aceita, qual peão de um jogo de xadrez. Do grupo que o acolhe nasce também esta convicção, essencialmente no casal que o lidera, Pilar e Pablo, que nada mais será como dantes. Eles bem sabem que estão prestes a abdicar de tudo, da harmonia sigilosa em que vivem em terreno inimigo, em prol deste invasor americano que acolhem e a quem carinhosamente apelidam de Inglés. Apesar disso, guardam esse prenúncio interiormente, e aceitam-no como um deles: esse Inglés que traz consigo um mau augouro, a morte e a destruição de tudo o que amam e construíram. Aceitam-no como um irmão, como um destino inevitável, um sacrifício em prol da República, a República que nunca viria a ganhar...

O romance toca também no tema suicídio, tal como em quase todas as suas obras. Hemingway indicia aqui a sua própria depressão que, juntamente com outros problemas de saúde, o levariam a por termo à própria vida em 1961. A menção ao suicídio do pai do personagem Robert Jordan, e o lamento deste em considerar tal acto cobarde e indigno, perguntando mesmo a outro personagem se pensaria o mesmo, traduz talvez os próprios pensamentos e conflito interior de Hemingway em relação ao suicídio do próprio pai. A conexão do personagem Robert Jordan a Hemingway é, de resto, muito forte, e Hemingway acaba por premeditar na obra o seu próprio desfecho.

Para o personagem Robert Jordan esses serão, na visão dele, os 4 últimos dias da sua vida. Os 4 últimos dias onde poderá sonhar, onde poderá amar, onde poderá ser humano - nascer outra vez! Para ele, toda a sua vida será vivida ali, naquele local e com aquelas pessoas que, incrivelmente, tão acolhedoramente o receberam. Esta é a maior homenagem ao povo ibérico, que Hemingway tanto admirou.

"Existe apenas o agora, e se o agora é apenas 2 dias, então 2 dias é a tua vida e tudo será em proporção. Isto é como se vive uma vida em 2 dias. E se parares de te queixar e perguntar sobre aquilo que nunca poderás ter, terás uma boa vida."

sábado, fevereiro 21, 2009

Poema para Galileu

rómulo de carvalho

Reprodução do “Poema para Galileu”, de António Gedeão, um dos poucos poetas portugueses, que um bruto como eu consegue apreciar verdadeiramente.

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileu! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios).

Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria...
Eu sei... Eu sei...
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileu Galilei!

Olha. Sabes? Lá na Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileu,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar - que disparate, Galileu!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação -
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileu?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileu,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um guiso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.

Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando um perigo
para a Humanidade
e para a civilização.

Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscava os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas - parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.

E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.

E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma

Ai, Galileu!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andava a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.

Tu é que sabias, Galileu Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.

Por isso, estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.

António Gedeão