Aprender a rezar na Era da Técnica de Gonçalo M. Tavares (2007)
“O medo é o mistério que a velocidade esconde.”
Já todos nós estivemos, por vários motivos, em fila. Imaginem, portanto, essa fila, ou então, uma qualquer fila de homens, ordenada, estruturada sob o jugo de uma regra, ou várias, impelindo cada um dos membros a manter a sua posição, cumprindo cada um o seu papel, no seu devido lugar. Lenz Buchmann, o doutor Lenz Buchmann, conceituado cirurgião, com o bisturi na sua mão direita, como que dissolvido no corpo dos seus doentes operados, domina espantosamente a técnica, conhece os limites e os seus adversários, e repudia homens em fila, homens que não disfarçam a mediocridade que revelam ao estar em fila.
Quarto e último livro de Gonçalo M. Tavares, da tetralogia: O Reino. Aprender a Rezar na Era da Técnica, impõe-nos o mistério do movimento que nos modela e nos obriga a tomar a força, num despique entre essas duas forças, à primeira vista antagónicas, entre a natureza, desconhecida e imutável e os mecanismos da técnica que norteiam o domínio humano e modelam de forma misteriosa esta “estupidez neutra” - a rudeza física de existir.
Auto-retrato de Lucian Freud.
A força, a doença e a morte, são três capítulos de uma vida, de várias vidas, de todas as vida, da de Lenz Buchmann em particular, descrita pela mão de Gonçalo M. Tavares. Lenz Buchmann, o conceituado cirurgião, estava ciente do ponto de ruptura a que o homem chegou com a natureza, uma natureza ainda no ponto zero e sem história – não havia uma única diferença histórica entre o vento que nos bate hoje na cara e aquele que tocara no rosto de um imperador romano – a batalhar com o homem pelo mesmo espaço, num combate sem trincheiras, sob os nossos pés e cabeças, reivindicando uma desobediência que nem sempre nos é tolerável. Lenz cumpre o seu papel, como bom soldado que é, combatendo esse material pouco visível, quase transparente – a doença, a matéria invisível do mal, que domestica de forma cínica os órgãos e as mesmas células de que eram compostas as grandes vontades, decisões e acções do passado: a mesma matéria com outra organização. Lenz é um soldado do lado dos homens, consciente do seu lugar, mas afastado do sofrimento individual, a compaixão era para si “(…)uma ferramenta inútil para a existência, que tecnicamente nada resolve(…)”.
No entanto, para Lenz Buchmann, a vida não é apenas um somatório de acções e acontecimentos, a vida pressupõem também operações de energia semelhantes à subtracção, multiplicação e divisão. É do grande verbo humano fazer - que claramente separou o homem da formiga, do cão ou das plantas –, que surge o movimento, o movimento de ataque, resultante do medo que arranca as coisas da sua imobilidade, ou do medo ainda mais poderoso, que mantém as coisas em movimento. A política surge para Lenz como a forma mais fácil e eficaz de alterar, consertar e controlar a ordem imposta pela normalidade, uma grande operação colectiva, que coloca milhares de vidas debaixo do seu bisturi. É o poder que permite a força, auxiliada pela técnica da máquina; máquina que não entende o lúdico nem o trágico, apenas a direcção de uma certa força e de um certo movimento, declarando as suas duas maiores capacidades: a explosão e a precisão. A explosão que instala a desordem, o pânico na ordem, e a precisão capaz de endireitar os desvios a essa mesma ordem.
É a religião que ousa afirmar que o que em ti é mais digno não te pertence – o Espírito, mas é o homem, sozinho, que mais facilmente se alheia de si próprio, até percorrer, sem dar por isso, caminhos por meios que não os do seu mundo.