terça-feira, setembro 29, 2009

Notáveis 7ª arte StageCoach de John Ford (1939)

Stagecoach Ford

“Well that saves them from the blessings of civilization.”

Os antigos westerns, de cowboys contra índios, cavalos, saloons e  pistoleiros povoam o nosso imaginário e obedecem, geralmente, a um estereótipo muito próprio que remete este tipo filmes para um género, um tanto ou quanto, fútil.

Mas nem tudo que é fútil deixa de entreter e é necessariamente mau. A diferença dentro do género, é que, por vezes, causa surpresa, chamando outros públicos para um universo que não precisa de ficar necessariamente agarrado a fatais preconceitos. Este é um bom ponto de partida para começar a olhar para os westerns de Jonh Ford – eles são, de facto, diferentes.

Este foi o primeiro filme, deste género, que john FordJohn Ford realizou. O primeiro de muitos, usando como pano de fundo o icónico cenário de Monument Valley e dando protagonismo a um então jovem actor – John Wayne, um actor que o acompanha, mais tarde, nos seus filmes de maior sucesso e um dos mais marcantes actores de Hollywood, de sempre.

É por demais manifesta a extraordinária sensibilidade cinemática de Ford, a forma como nos conduz a história, envolvendo-nos nos seus planos, quase de uma forma hipnotizadora. Este modelo, muito próprio e único de Ford permitiu-lhe ser venerado pelos seus pares e por todos os amantes de cinema.

“Anybody can direct a picture once they know the fundamentals. Directing is not a mystery, it's not an art. The main thing about directing is: photograph the people's eyes.” John Ford

John Wayne1stPrimeira aparição de John Wayne com John Ford, seguida, no filme, de um revelador close-up à face do actor.

Tirando este importante particular, transversal a todo o trabalho de John Ford, os seus westerns conseguiram marcar pela diferença, também pela introdução de novas valias à narrativa, principalmente, na exploração metódica das qualidades e defeitos das suas personagens, em contextos variados, não raras as vezes, sob situações alegóricas. StageCoach é disso um exemplo, uma exposição de costumes morais e de preconceitos sociais, demonstrando que nem todas as “boas” pessoas são assim tão boas e que aquelas que aparentemente já delas nada se pode esperar podem revelar, subitamente, qualidades extraordinárias.

Uma diligência, com um grupo de diferentes personagens saí em direcção a Lordsburg, tendo de passar por uma perigosa zona, na altura, controlada por um grupo de apaches beligerantes. Uma prostituta, um médico alcoólico, com propensões para filosofias, um tímido vendedor de whisky, um elegante e cavalheiro jogador de apostas, uma prendada jovem dama, um simpático pateta condutor da diligência, um xerife, um banqueiro prepotente e vigarista que foge com o dinheiro do seu banco, e Ringo Kid (John Wayne), um fora-da-lei que procura vingar a morte do seu pai e do seu irmão, em Lordsburg.

snapshot20090929142840

Durante a atribulada viagem, passada na sua maioria, dentro do espaço apertado do coche ocorrem uma série de peripécias que põem em jogo o carácter de cada uma das personagens, com direito a uma perseguição com índios, dúvidas, drama e situações cómicas, protagonizadas, principalmente, pelo médico constantemente ébrio, Thomas Mitchell, numa grande representação, que lhe viria a valer o Óscar de melhor actor secundário, no ano de 1940, merecidamente.

Longe de ser o melhor filme, na minha opinião, deste género, de John Ford, teve, no entanto, a virtude de inaugurar um espaço que acabou por ser só seu.

domingo, setembro 27, 2009

O mais relevante das legislativas:

POUS

Só 0,08%, ou 4315 portugueses, quiseram acabar, definitivamente, com os despedimentos em Portugal.

Afinal, tanto sindicado, tanto operário, tanta greve e ainda houve dois milhões de portugueses para votar no engenheiro.

 

Neste país de capitalista, cada vez somos menos, camaradas.

 

Outro pequeno facto:11 mil portugueses declaram-se abertamente racistas, ao votar no P.N.R, e 592 mil gostaram do sorriso do Portas.

A luta continua e o Belenenses ainda há-de ser campeão outra vez.

sábado, setembro 26, 2009

Crónica do voto útil

autocolante

O voto útil torna a ganhar. O voto dos descrentes e da medonha falta de convicções políticas que varre a nossa sociedade.

Muitos dos que vão votar no PS, fazem-no para o PSD de Manuela não ganhar.

Muitos dos que votam no PSD, fazem-no contra Sócrates.

E por aí fora… já falta pouco (para o Benfica-Leixões).

quinta-feira, setembro 24, 2009

Ler, mais que ver 389x152 

Cosmos de Carl Sagan (1980)

cosmos

“Se um ser humano te desagrada, deixa-o viver. Em 100 mil milhões de galáxias não encontrarás outro igual.”

Sejam bem-vindos a conhecer, ou a redescobrir, uma das maiores e mais intimistas obras de divulgação científica, do astrónomo, pedagogo e incansável divulgador de ciência, Carl Sagan.

Cosmos é a sua obra mais conhecida, livro, que mais tarde, deu lugar a uma famosa série televisiva, com o mesmo nome. Além de divulgador de ciência Carl Sagan foi autor de vários romances de ficção científica e teve um papel importante nas missões de exploração Mariner, e da Viking 1 e Viking 2, da NASA.

Nos capítulos “Blues por um Planeta Vermelho” e “Relatos de Viajantes”, descreve pormenorizadamente estas missões, a sua importância e os dados novos que trouxeram para o conhecimento dos nossos planetas vizinhos mais próximos, mas também o caminho feito até lá anteriormente, pelas missões soviéticas e pela missão Voyager aos planetas mais externos do sistema solar - Júpiter e Saturno, Úrano, Neptuno e Plutão.

Io-voyager1 Imagem de Io, a maior lua de Júpiter, obtida pela missão Voyager 1.

Nas mais de 450 páginas, que preenchem o livro, encontramos bem mais do que meros relatos de exploração espacial; é-nos apresentada uma lição entusiasmante sobre a procura de respostas à intrínseca curiosidade do homem, ao longo dos séculos, por tudo o que nos rodeia. De Eratóstenes a Copérnico, passando por Kepler, Galileu, Newton e Einstein, percorremos os séculos, as interrogações e os trabalhos que nos levaram até à posição que ocupamos agora.

Para Carl Sagan o nosso destino é o conhecimento, e a verdadeira importância do nosso mundo está na coragem das nossas perguntas e profundidade das nossas respostas. As perguntas, como descreve, começaram desde que o homem olhou para o céu; as principais respostas começaram a ser encontradas no séc. III a.C, naquele que foi o maior centro mundial de comércio, cultura e saber – a cidade de Alexandria. Mas o declínio do saber, no mundo antigo, veio de dentro da própria Alexandria. A sua, inicialmente, maior impulsionadora, a filosofia, censurou-a mais tarde, com o seu desprezo pelo prático - Platão incitava os seus seguidores a não perderem tempo na observação, centrando-se apenas no pensar; Aristóteles defendeu que os de classe mais baixa, e por isso inferiores, deviam estar sempre sob o mando de um dono, o que para Benjamin Farrington, historiador de ciência, justifica o declínio da ciência no mundo antigo. A tradição mercantil e esclavagista fomentou o desprezo do trabalho manual pelas elites – a ciência faz-se de trabalho manual –, a riqueza e o poder eram obtidos pela posse de escravos, a ociosidade diligenciou a insipiência e a religião acabou por imbuir os dogmas, por vários séculos.

Hypatia, 1885, by Charles William Mitchell (1854 - 1903) Representação de Hipátia, por Charles William Mitchell, filósofa, cientista e educadora de Alexandria, brutalmente assassinada por partidários do arcebispo de Alexandria, Cirilo, que com conchas de abalone separaram-lhe a carne do osso. A maioria dos seus trabalhos foram queimados, os que sobreviveram foram um legado importantíssimo para a filosofia e ciências. Apesar disso o seu nome foi esquecido e Cirilo acabou santificado. Começara a Idade das Trevas.

A incitação da ciência nos últimos três séculos, continuou muito do trabalho interrompido pela destruição da Biblioteca de Alexandria (sabe-se lá em que pé estaríamos hoje se tivéssemos acesso a uma pequena parte do seu conteúdo que foi destruído), e de um grande número de homens, e  algumas mulheres, que se acharam a encarar os obscurantismos das suas épocas, pagando, não raras vezes, com a sua vida. A ciência, felizmente, é uma linguagem dinâmica, Seguindo, por outro lado, hoje, os mesmos princípios fundamentais da ciência de Eratóstenes, no que se agora resume como o método científico, baseando-se, sinteticamente, em duas regras fundamentais, que sempre chocaram com o espírito humano: o de não haver verdades absolutas - todas as asserções devem ser cuidadosamente examinadas com espírito crítico - e, que tudo aquilo que entra em contradição com os factos deve ser afastado e revisto.

Espantado com o céu que nos cobre, preenchido com mais de 100 biliões de estrelas, o homem, e depois cientista Carl Sagan, arrasta-nos para uma viagem de descoberta da nossa espécie, da sua evolução, da rocha em que habitámos, dos astros que nos acompanham, até às estrelas mais distantes, todas elas, obedecendo escrupulosamente às mesmas constantes físicas da natureza, constituídas pelos menos elementos químicos, que milhares de milhões de anos de evolução molecular, levaram ao aparecimento de vida no nosso planeta, tal e qual como a conhecemos.

“O céu foi feito pela vida”

Rosette_ballauer_nebulosaNebulosa Roseta, constituída essencialmente por hidrogénio, átomo fundamental e base da evolução da vida na Terra.

Sagan é particularmente eficaz na persuasão do seu grande objectivo, da mensagem que levou a todos os cantos do planeta - da ideia da nossa “cidadania cósmica”, de uma existência que temos de deixar de encarar narcisicamente, mas sim como parte que é do próprio cosmos que toma consciência de si.

Entusiasta das viagens e da comunicação para lá das estrelas, dos postos de escuta do espaço, levada a cabo, nos nossos dias, por centenas de observatórios por todo o mundo, defendia, baseado em premissas científicas, a existência de vida noutro sítio do Universo, ainda que fosse de um tipo diferente da nossa. Em 100 biliões de estrelas, poderá haver, segundo os seus cálculos, até 1 milhão de civilizações. A milhões de anos de existência, ou mesmo já aqui ao lado, na estrela mais próxima do Sol, a Alfa Centauro, poderá existir realidades tão ou mais complexas, civilizações técnicas como a nossa, que sujeitas às mesmas leis universais da natureza, procurarão, por certo, em determinada altura, os seus vizinhos no espaço.

Mas mesmo que a Terra possa ser o único planeta com vida no Universo, nesse caso, a nossa responsabilidade de não nos destruirmos, a nós próprios e ao planeta em que habitámos, de combatermos as nossas “paixões reptilianas”, é ainda mais premente. Devemos isso, no limite, ao acaso da conjugação perfeita de condições que nos permitiu aspirar ao que somos e ao que já conseguimos alcançar.

“Os mundos são preciosos"

earthTerra vista da Lua. Foto tirada durante a missão Apolo 11.

O ano Internacional da Astronomia, que se está a festejar, é um bom motivo para encontrar a obra de Carl Sagan, um apaixonado pela astronomia e pela vida.

Cosmos é a sua obra maior. Brilhantemente explícita, de leitura fácil e com uma linguagem acessível e clara a todos, mesmo para aqueles para quem a ciência não lhes diz nada. Sagan tem o talento de nos falar, não só ao intelecto, mas, principalmente ao coração, apelando ao homem e à sua humanidade, à busca pela descoberta da consciência e do espírito humano, dos verdadeiros valores que nos devem nortear, e da nossa responsabilidade e relação com os outros, com o nosso planeta e com universo…, com o cosmos – tudo o que existe, existiu e existirá.

sábado, setembro 19, 2009

A Pedra da Tolice

Extracting the Stone of Madness (1490) 

Reza um famoso provérbio flamengo, do séc. XIV, que o estúpido e ignorante, pensando-se enfermo de uma loucura, sujeitava-se a uma intricada cirurgia, levada a cabo, por este sim, um declarado louco, com o fim de remover uma fantasiosa pedra da loucura, algures escondida na cabeça do pobre infeliz.

O senhor Hieronymus Bosch pintou esta sátira à ignorância, por volta de 1490. Ao apelo de Lubbert Das, inscrito em volta do círculo que nos mostra a cena, declarou-se o cirurgião à esquerda, de funil na cabeça, aludindo à sua própria loucura, mas também avareza – com a bolsa de dinheiro virada para o observador. O frade que distraí o paciente com a sua conversa, compõem o papel da igreja na criação de falsas crenças e a ciência que assiste a tudo sem ser tida em conta, acabou figurada de mulher, com um livro na cabeça. 

Este tipo de ridículos parece-nos distantes à época, tanto mais que já ouve um português a ganhar um Nobel partindo de pressupostos idênticos. Mas de génios e loucos temos todos um pouco. A tolice mora na cabeça de todos e camufla-se muitas vezes atrás de complexos exercícios de racionabilidade, difíceis de remover, dada a sua “utilidade”.

O voto útil é para mim um desses exemplos. O voto, a substância essencial da democracia, deveria encerrar um compromisso, que por muito frágil que é, representa, a liberdade na escolha de ideais. O voto útil é esquecer tudo em que se acredita e escolher entre o menos mau, é a prostituição perante os jogos de poder que servem a alguns, é um mal menor que encoberto na cativante utilidade vai conduzindo a nossa democracia nesta mediocridade, com que nos vamos contentando e lamentando. Eu, para mais tarde não me lamentar, não vou ser tolo outra vez.

sábado, setembro 12, 2009

Os fuzilamentos de três de Maio, por Goya.

The 3rd of May 1808 in Madrid the executions on Principe Pio hill (1814)s

Durante as invasões Napoleónicas, na Península Ibérica, uma série de revoltas populares levaram ao fuzilamento de centenas de pessoas. Goya, em 1814, representou uma dessas macabras cenas, popularizando o dia seguinte ao 2 de Maio de 1808 (representado também noutro famoso quadro de Goya), quando, em Madrid, um grupo de insurgentes atacou uma escolta de soldados mamelucos – soldados egípcios da guarda imperial de Napoleão I.

O terrível detalhe da morte, num local inóspito e desolado, o pormenor das faces dos condenados, mostrando medo, resignação e desespero, em contraste, com o anonimato dos carrascos, representados de costas para o espectador, mostra a força da violência da imagem deixada por Goya, uma imagem repetida um pouco por toda a Península Ibérica, durante as as invasões napoleónicas, inclusivamente, na vila de Arrifana, no dia 17 de Abril de 1809. 

O poeta, crítico e ensaísta Jorge de Sena escreveu um poema, de título: Carta a meus filhos, a propósito deste quadro de Goya, que continuará a merecer toda a actualidade, pelo menos, enquanto o homem se conhecer tal como é.

CARTA A MEUS FILHOS
Sobre os fuzilamentos de Goya

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena

Esta é também uma forma de celebrar o regresso, a Portugal, do corpo de um alguém que nele habitou, e que prevaleceu para além do litigar.

quinta-feira, setembro 10, 2009

Ler, mais que ver 389x152

A Quinta dos Animais de George Orwell (1945)

cp-quinta

“0s animais diante da janela olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos, e novamente dos porcos para os homens: mas era já impossível distingui-los uns dos outros.”

A Quinta dos Animais, Animal Farm, no título original, ou o Triunfo dos Porcos, como ficou mais conhecido em Portugal, é uma fábula criada por George Orwell, nos anos 40, como metáfora ao mito soviético vivido na Inglaterra do pós-guerra. Orwell acreditava no socialismo, não como modelo teórico, mas como consequência prática das desigualdades entre os homens. Precisamente, Orwell viu o desvirtuar dos seus ideais, na evolução da revolução socialista, culminar na bárbara e ditatorial União Soviética de Estaline, e na Guerra Civil Espanhola, na qual participou.

Nesta história, os animais de uma quinta revoltam-se contra o seu proprietário humano, incentivados pelas ideia revolucionária dos porcos - todos os animais deveriam ser considerados como iguais, e livres da tirania do Homem.

A harmonia inicial entre os animais, estabelecida por uma série de princípios a que os porcos chamaram “Animalismo”, resumida em 7 mandamentos, é lentamente substituída pela hierarquização e tecnocracia imposta pelos porcos, que, dissimuladamente, assumem a liderança da quinta, por força da sua superioridade intelectual, a que nenhum outro animal se consegue impor.

Remetidos a um papel de chefia, sem nada de concreto realmente fazerem, os porcos começam a adoptar, lentamente, virtudes humanas, que com o tempo, astúcia e indefectíveis exortações, vão logrando os outros animais, até, finalmente se equilibrarem em duas patas, adquirirem vícios humanos e, resumirem os princípios do Animalismo num só:

Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.        

Ler esta pequena história de Orwell é ler uma exímia alegoria à revolução russa, entre os anos de 1917 e 1943, uma sátira que mascara os principais actores políticos – Karl Marx, Lenine, Trotsky, Estaline –, os vários sectores da sociedade russa – a igreja ortodoxa, o proletariado –, os seus vizinhos, aliados e beligerantes – a Alemanha Nazi, o mundo ocidental –, reduzindo um país a uma quinta e o mundo a uma vila e, uma pertença fatalidade biológica a um vício fatal do homem pelo despotismo, mesmo quando este, aparentemente, parte dos mais nobres princípios.

d0fbde0c0865224b_landing Estaline, ditador russo, líder da União Soviética e um dos principais alvos das críticas de Orwell.

Mas o que encerra esta fábula, vai muito mais para além da analogia com um período da história mundial, e da crítica acérrima ao estado soviético e ao seu partido único – o partido comunista –, evoca, sem proselitismos, a força da propaganda e das armadilhas do discurso como meio de persuasão dos menos preparados, e portanto, mais fracos – hoje em dia, mais do que nunca, a principal arma ao serviço da política.

terça-feira, setembro 08, 2009

A verdade de Velázquez

Aesop, ca.1638

A verdade de uns nunca é a verdade para outros. Diz-se que só existe uma verdade, a tal verdade, “universal e absoluta”, ou lá o que isso é. A dúvida, nunca deixa lugar à verdade.

A altura que estamos a passar – de intensa rebaldaria política, pelo aproximar de eleições – é rica em verdades, meias-verdades e falsetes rocambolescos que entretêm o burgo e os burgueses a soldo.

O último delírio nacional parece ter sido o final do Jornal Nacional – o caso do momento, no país. Alguns tem a certeza que foi o PS e o seu secretário geral, José Sócrates, alvo principal dos shows de sexta-feira, a pressionar alguém que mandou a jornalista transformista às couves. Outros dizem que foi o PSD, da Manuelinha, o responsável, para prejudicar o dito engenheiro – bonita teoria também.

Há uma outra, bem mais plausível e na qual consigo acredito mais. Incúria, péssimo timing, défice de visão estratégica, por parte dos senhores que mandam lá naquilo. Apesar de tudo, ninguém os pode censurar por querer correr com aquela figura dos seus corredores.

No entanto, a primeira hipótese é a verdade aceite por um maior número de pessoas, apesar de estúpida e absurda – só Sócrates teve a perder com acaso, imaginar que o próprio, a tão poucas semanas das eleições, é o fiador desta história, é, repito, estúpido e absurdo. E como eu ainda acredito na espécie humana, ninguém é, sozinho, tão estúpido e absurdo, quando comparado com uma multidão que se abstém de ajuizar perante o aparentemente óbvio, referido vezes sem conta, até se tornar a mais insofismável das verdades.

Velázquez, dizia-se, era o pintor da verdade, o mais primoroso dos auto-retratistas conseguindo imprimir nos seus quadros, disposições dos seus modelos, como nenhuma avançada máquina fotográfica do nosso tempo, algum vez seria capaz. Na figura em cima, representado por Velázquez, está Esopo, escravo grego, do século VI a.C, a quem se atribuem as primeiras fábulas inventadas pelo homem.

Em Portugal, no século XXI, o país da fábula política, Esopo teria feito carreira, e as verdades de Velázquez, nunca chegariam a sê-lo.

sexta-feira, setembro 04, 2009

Expialidocious (docious como chocolate)


Eu sempre fui da opinião de que se um indivíduo gosta de chocolate e lhe apetece chocolate, deve manifestar desejo por chocolate e não por morangos.
O que pode acontecer é os morangos beneficiarem da sua cativante fragrância e seduzirem com o seu vermelho luxuriante. Será a eloquência do chocolate capaz de travar outra doce tentação?
Um doce que respira amargo continua a parecer doce. E a textura de um castanho rebelde tem de se mostrar superior. Porque o é. É-o sempre.
Preto. Branco. Castanho. Pequeno. Grande. Médio. Com amêndoa. Com bolacha. Com caramelo. Simples ou com sabor a morango.
Ironia? Nem por isso. O chocolate não pode saber a morango, é mentira. Não existe o 'ou' naquela frase. Não pode o sucedâneo servir de contento, não sacia. Porque a sede é rebelde, como ele.
E se o seu segredo é a sua provocação, o mistério do seu sabor é o seu capricho.
Doce fiel e descomprometido. Porque o é. É-o sempre.
Chocolate agora e depois… delicado e delicioso como expialidocious*.





*Expialidocious por Pogo, artista australiano que se distinguiu na música electrónica. Conhecido por criar música utilizando pequenos trechos de filme. Destacou-se pela composição de sons a partir de filmes da Disney, tais como "Alice no País das Maravilhas", "Harry Potter" ou "Mary Poppins", no caso.

quinta-feira, setembro 03, 2009

JESUS É IMPLACÁVEL, O MISTER.wdiag

O jornal ABola é para a grande maioria dos portugueses o equivalente, em formato diário, à bíblia. Ambos são amplamente lidos todos os dias por milhares de pessoas, ambos contam histórias mais ou menos mirabolantes, sorvidas por quem os lê como as últimas verdades insofismáveis do Universo, ambos levam algumas dessas tantas milhares de pessoas a reflexões diárias e esperançosas.

Não tive oportunidade de ler, não consegui adquirir nenhuma cópia - com muita pena minha, um pedaço de história deste merecia ser encaixilhado e colocado na zona mais nobre de qualquer habitação…, humana –, da edição de 2 de Setembro de 2009, que trouxe como estampa a capa que podem contemplar em cima.

Avé filhos de Abraão. Avé ao quadrado senhores responsáveis pelas capas do jornal ABola, anunciantes da chegada do JESUS, o EXTREMINADOR IMPLACÁVEL que não quer sofrer mais de sete golos em todo o campeonato, mensageiros do Setembro quente e do Reparil, o alívio imediato da dor.

Puxa, este é mesmo o maior jornal do mundo.

terça-feira, setembro 01, 2009

O Martírio de S. Filipe (1639)

The Martyrdom of Saint Philip

O martírio de S. Filipe é um fresco impressionante. Nenhuma reprodução, por muito boa qualidade que tenha, consegue fazer jus à grandiosidade desta prodigiosa obra de José de Ribera.

A enorme tela representa uma alegoria à crueldade humana, a passagem bíblica em que o apóstolo São Filipe é crucificado em Hierápolis. Mostra, em vez do martírio do homem crucificado, a preparação para a crucificação, numa representação isenta de sangue e violência em que o foco é o enorme corpo do mártir, a sua expressão resignada, o esforço dos carrascos a erguê-lo, a face de estupefacção do homem que lhe agarra as pernas, o olhar despreocupado dos espectadores e o inquietante fitar da mulher, com o bebé ao colo no canto inferior esquerdo da tela, ao observador.

Está no Prado e é imperdível de tão arrebatador que consegue ser. Fundamental para quem gosta de admirar o génio humano.