Os Irmãos Karamazov de Fiódor Dostoiévsky
Fiódor Dstoiévski é, indiscutivelmente, um dos maiores escritores da literatura mundial. Os seus livros são revestidos de uma vincada profundidade psicológica, que levaram o próprio mestre da Psicologia, Sigmund Freud, a considerá-lo o maior romancista de todos os tempos. A sua escrita é precursora do existencialismo do século XX, uma corrente que destaca a individualidade e liberdade de cada ser humano, cujos comportamento e personalidade são moldados de acordo com as vivências, redefinindo o próprio pensamento. Os Irmãos Karamazov acabou por ser o último livro do escritor, finalizado poucos meses antes da sua morte, num cataclismo de sucessivos ataques epilépticos cada vez mais frequentes e que o paralizavam. Talvez por isso esta obra seja tão especial, onde todas as dimensões da sua mestria são colocadas com tanto amor.
Dostoiévski explora minuciosamente, como é habitual, toda a dimensão do ser humano, particularmente no que toca à autodestruição, humilhação e estoicismo, bem como a tempestade interior criada após um determinado evento marcante, como um assassinato. Nesta sua última obra, o seu génio excedeu-se ao analisar uma família completa, os Karamazov. A desagregação e vazio familiar entre três irmãos, Dmitri, Ivan e Aliocha, e o pai que os abandonou à sua sorte, Fedor, déspota e escrupuloso, são o ponto de partida para um eclodir de acontecimentos, desde o anedótico ao conflituoso, acabando por esta reunião resultar numa inevitável tragédia.
Essa tragédia vai constituir um marco no livro que operará mudanças profundas em cada um dos irmãos. Acabará por ser analisada, em julgamento, sob variadíssimos prismas da psicologia humana, mergulhando muito além da superficialidade do acontecimento em si. Todos os personagens vão sendo ricamente caracterízados, sendo o passado e o futuro os grandes motivadores das acções do presente. É curioso observar o quão diferentes se tornaram os três irmãos, cada um deles abandonado à sua sorte, enveredando por vias educacionais, culturais e filosóficas distintas uns dos outros. Esta é a base para a filosofia existencialista do livro. Apesar de tudo, todos eles acabam por manifestar na obra, com maior (Ivan e Dimitri) ou menor (Aliocha) fulgor, ainda que lutem contra ela, o traço característico do Karamazov - um indivíduo de extremos, levando a sensualidade até à febre.
S. Petersburgo, o cenário da narrativa.
Ao longo da narrativa vão surgindo diversas intrigantes histórias paralelas, marcantes só por si mesmas capazes de fazer vários livros. São abordados variadíssimos temas, como a dicotomia religião/ateísmo, a loucura, o conflito interior de ideais, o niilismo, a situação político-cultural-social da Rússia dos finais do século XIX, a miséria e sofrimento humanos, a doença e morte precoce... Recordo-me particularmente do corpo corrupto do santo Zossima, ou do relato perturbador de Ivan sobre o Santo Inquisidor, condenando, sabendo-o disso, o próprio Deus reaparecido, à morte pelo fogo em Sevilha. A obra assenta num cataclismo de ideias profundas, movedoras e intemporais e a escrita, essa, é rica e brilhante como seria de esperar do autor de O Idiota e de Crime e Castigo. Por todas estas razões, esta é uma obra verdadeiramente edificante, leitura após leitura, cujo tempo não apagará. Uma obra que tanto nos provoca o mais ingénuo dos risos como o peso de toda a desolação humana.
"Tudo é dor para o Homem que habita a Terra, porque de todo o lado o invade a dúvida e o tormento (...) Não é em vão que sou um Karamazov, e quando caio no abismo de cabeça para baixo e pés para cima, sinto o gozo de tão humilhante atitude e orgulho-me disso. E do fundo da minha vilania elevo as minhas súplicas. (...) Todos nós, os Karamazov, somos como insectos. E mesmo em ti, que és um anjo, vive este insecto que te provocará uma tempestade no sangue... Tormentas, porque a concupiscência é uma tormenta...". Dmitri falando para Aliocha.
"Ainda que não acreditasse na vida, ainda que perdesse a fé na minha amada e na ordem das coisas e me convencesse que tudo é desordem e um caos maldito e infernal, e me invadisse o horror de todas as desilusões humanas, desejaria viver, e uma vez provado o cálice, não o abandonaria até havê-lo acabado (...) a minha juventude triunfará de tudo (...) é característico dos Karamazov esta sede de vida sem consideração pelo que for, e tu mesmo a sentes". Ivan falando para Aliocha.
"Nunca compreendi que se possa amar ao próximo. É precisamente ao próximo, no sentido restrito, que não se pode amar, pois à distância ainda admito e concebo que se possa amar. (...) Em meu entender, um amor como o de Cristo é um milagre, impossível de realizar na Terra (...) Necessito de justiça, ou destruir-me-ei a mim próprio. Não uma justiça que brilhe no tempo e no espaço infinitamente remotos, mas sim a sua aplicação aqui na Terra e que os meus olhos a vejam". Ivan falando para Aliocha.
"Se alguma coisa protege a sociedade e reforma o criminoso, transformando-o noutra pessoa, é a lei de Cristo por si só, que se manifesta pelo conhecimento da sua própria consciência". Padre Zossima falando para Ivan.
"Seja o que for que nos aconteça na vida, ainda que não nos vejamos por vinte anos, não o esqueçamos em toda a vida. Lembremo-nos que estivémos aqui reunidos por um sentimento de amor (...) que nos tornou melhor do que na realidade somos. Meus filhos, meus amigos, não tenhamos medo da vida! A vida é boa quando agimos bem e com intenções puras." Aliocha para os rapazes.
"Agora e sempre, para toda a vida! Viva Karamazov!"
2 comentários:
Agradáveis períodos passei eu com o sol de Verão a aquecer-me o corpo, e o relato da história dos Karamázovs a encher-me a existência. Bonita obra, com descrições admiráveis, cheia de pequenas histórias que em muito enriquecem a trama principal, 900 páginas que se tornam curtas após o seu término. Pungente como todas as obras de Dostoiévski, a mais sensível e de maior religiosidade, cresse também que é a que recorda a sua infância, nas eminências da sua morte.
Vale a pena citar outra vez:
"Não há que ter medo da vida! Que bela é a vida quando fazemos alguma coisa boa e verdadeira!"
Não é por acaso que Freud considerava "Irmãos Karamazov" a maior obra da história...
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