A Ciganita de Miguel de Cervantes (1613)
“Os ciganos e as ciganas, parece, vieram a este mundo só para serem ladrões; nascem de pais ladrões, criam-se entre ladrões, estudam para ladrões e, finalmente, saem-se ladrões sabidos em qualquer situação e o desejo de roubar e o facto de roubar são, neles, acidentes inseparáveis, que só perdem quando morrem.”
Inserindo-se na compilação: Novelas Exemplares", “A Ciganita” é o maior dos 12 contos elaborados por Cervantes, pequenas histórias político-sociais da Espanha renascentista. Cervantes é mais conhecido pela sua famosa obra: Dom Quixote de La Mancha, enobrecida como uma das mais importantes obras da literatura mundial. Não obstante isso, Miguel de Cervantes não se furtou a registar o seu olhar perspicaz em várias dinâmicas sociais; no caso a apresentar, nos itinerantes grupos ciganos e na nobreza do princípio do século XVII.
A prerrogativa de Cervantes começa no seu estilo de prosa: elaborada, tem uma dimensão poética única, dona de um ritmo muito próprio, elevando-se como uma melodia, tal e qual uma canção com uma harmonia musical universal. A ironia e a ambiguidade são as constante transversais nos textos de Cervantes, sempre repicados de um astuto ridículo, transformando a mensagem numa divertida comédia jocosa, sem nunca ser flagrante.Este conto é particularmente marcado pelo idealismo, também este uma marca do estilo de Cervantes. Preciosa é a pequena cigana, encantadora, tanto pelos seus atributos de beleza, como pela formosura das suas cantigas, enfeitiçando todas as gentes com as suas virtudes. Dona de um espírito livre, pouco comum entre os da sua etnia, leva André Cavaleiro, um jovem fidalgo, a abdicar da sua vida de nobre e seguir a vida cigana, para provar o seu amor por Preciosa.
No interesse da narrativa encontra-se entrincheiradas uma série de questões morais que vão para além do contexto histórico em que Cervantes a escreve, estendendo-se até à actualidade. Para lá de uma evidente história de amor, temos um par de personagens que iludem o próprio destino, contradizendo o estereótipo e o arquétipo dos grupos a que pertencem, libertando-se dos rótulos a que o sujeito está imposto, por pertencer a um determinado grupo social. Uma lição desconceituada de um espanhol da idade moderna.
Para os menos atentos, o perfil irónico de Cervantes pode levar a conclusões erróneas, se olhado superficialmente. Mas, a sua poética, acaba por deixar a descoberto as virtudes individuais da liberdade moral, da obsessão, da nobreza espiritual e da honra, principalmente, quando estas assentam numa consciência e em princípios morais bem delineados, infelizmente, pouco habituais à grande maioria dos homens.
P.S: Para terem uma ideia da influência que o estilo de Cervantes pode imprimir na escrita de alguém, ver a novela inacabada Amendoins com Azeite XXX, escrita por Nimpo, um registo ficcional das aventuras e desventuras de Lord Pilinhitas e Belica del Toboso. Arde nos olhos, mas queima no coração.