“Il banchieri”
The Moneylender and his Wife de Massys, Quentin (1514)
Dinheiro e poder sempre andaram de mãos dadas, hoje como no século XIV, dinheiro é poder, e poder é influência. Nos momentos de crise, como este, facilmente se identificam os culpados. São sem dúvida aqueles que enriqueceram, proporcionando conforto, sonhos e riquezas àqueles que tudo querem ter, sem para isso o poderem. Mas serão eles os únicos culpados? Claro que não. Serão os principais? Eu acho que não.
Se o neoliberalismo era visto como uma virtude acima de todas as discussões pelos governos mundiais, hoje, esses mesmos governos, admitem o erro de deixar um mercado especulativo entregue ao seu próprio destino. Mas que receios podiam ter, se foi esse mesmo sistema capitalista que criou os paradigmas civilizacionais, em que nos habituamos a viver? Todos. Soubessem os senhores governantes mais de história, tivessem menos interesses e fossem menos servis a quem tem mais dinheiro na mão, numa determinada altura, e, saberiam que quem por norma faz do dinheiro um negócio, está mais próximo genealogicamente dos mercenários da Idade Média, do que dos missionários da boa vontade. Para virtuosismos celestiais, já grupos de indivíduos válidos fecham-se em ascese, Deus criou “O África” e Dom Nuno Álvares Pereira salva velhinhas de óleos de fritar peixe.
Convém não esquecer que o objectivo dos bancos é ganhar dinheiro com o dinheiro dos outros, o que é perfeitamente aceitável, quando proporcionam oportunidades equilibradas aos seus clientes, que de outra forma não podiam criar o seu próprio valor. O problema é quando o negócio passa pela especulação financeira, se esquecem os mínimos valores morais, se faz do logro um instrumento, e alimenta-se a ganância à custa do desprezo social. O exemplo de John Law parece distante aos decisores políticos, quando permitem que alguns continuem a fazer do mundo o seu casino pessoal. Mas, nem sempre foi assim; antes de existir os bancos como os conhecemos hoje, antes de existir o mercado financeiro que a maioria de nós, inclusive eu, de pouco percebe - existiam os judeus.
The Jewish Bride (1667) de Rembrandt Harmensz
Essa raça de homens, odiada por tantos, perseguida por muitos, rufias comensais da Palestina, sempre tiveram a fama da habilidade para o dinheiro e os negócios. Essa fama, não é de todo injusta. Foram os primeiros a experimentar a usura - o pecado esquecido -, nas suas bancas em Veneza. Foram os primeiros, mas não foram os únicos, nenhum deles, no entanto, como a família Medici.
Nenhuma outra família deixou tantas marcas numa época, como a família Medici durante a Renascença. Bastaria dizer, que dela saíram quatro papas (Leão X, Clemente VII, Pio IV e Leão XI), duas rainhas de França (Catarina e Maria), quatro duques (de Florença, Nemours, Urbino e da Toscânia). Deixaram um legado na arte e na ciência ímpar, senhores de Florença, são os responsáveis pelo esplendoroso legado arquitectónico da cidade (Villa Cafaggiolo, Convento di San Marco, Basílica de San Lorenzo, Palácio Vecchio, Galeria Uffizi, etc…), patronos de Michelangelo, Botticelli e Galileu.
Toda esta abundância e poder não apareceram do nada. Giovanni de Medici fundou o primeiro grande banco - até aí os banqueiros não eram mais do que gangster, fazendo-se valer da violência para garantir os capitais do empréstimo. O facto destas estruturas serem monolíticas, tornava o negócio muito susceptível à ruína, sendo facilmente derrubados por um devedor. O sucesso dos Medici, a longo prazo, foi as suas múltiplas parcerias e filiais, remunerando os parceiros com a partilha dos proveitos, agindo como entidades independentes, sob alçada do banco central dos Medici. Mas a principal particularidade do sucesso dos Medici foi a criação de facturas de transacções (Cambium per Litteras), um sistema de registo metódico e cuidado (libro secreto), onde se registava de um lado os depósitos e reservas , e do outro os empréstimos e as facturas comerciais de cada cliente – o primeiro grande registo de balanços conhecido. A diversificação dos seus empréstimos, diluiu os riscos, garantindo-lhes o sucesso e a fortuna; o negócio do câmbio, a absolvição do seu pecaminoso negócio; a agilização permitida aos seus clientes nas transacções, única – se um negociante que devesse a outro uma determinada soma que não pudesse pagar em dinheiro até ao final da transacção, o credor passava uma factura ao devedor, que a podia usar como meio de pagamento ou, para obter dinheiro em forma de desconto no banco, agindo o banqueiro como intermediário do negócio. Esta diversidade de empréstimos, e a proximidade com os clientes, levou à redução dos custos para os clientes e a proliferação do negócio. Em 1402, com um capital de 20,000 florins e mais de 70 parceiros na folha de pagamento, fez um proveito de 151,820 florins, entre 1397 e 1420 – 6,326 florins por ano, uma taxa de retorno de 32%. É difícil imaginar um negócio mais rentável.
O poder foi crescendo e, após a morte do patriarca Giovanni de Medici, o seu filho Cosimo de Medici, ficou ao leme dos negócios, com a tarefa de manter a argúcia financeira da família. Cosimo, era já o homem mais poderoso daquela região, o soberano em todos os sentidos, menos no nome, com uma reputação como nenhum outro cidadão teve, desde a queda do Império Romano, até aos nossos dias. A adulação dos banqueiros foi feita como nunca antes imaginada. O último quadro em cima, de Botticelli, mostra um jovem bem parecido com uma moeda na mão, a face na moeda é de Cosimo de Medici, com a inscrição “pater patriae”, pai deste país. Outro exemplo, é o fresco “The Adoration of the Magi”, do mesmo Botticelli, que capta a transfiguração na finança que os Medici levaram a cabo, elevados à divindade. Num olhar atento, identificam-se grande parte das personagens como alguns membros da família Medici – por exemplo, a lavar os pés do Jesus, Cosimo o velho e de roupão azul à esquerda, Lourenço o Magnífico.
The Adoration of the Magi (1478/1482) de Botticelli
Foi já sob a liderança de Lourenço o Magnífico, que as conspirações contra a família, super-rica e de crescente poder, tiveram o seu maior eco. Lourenço, neto de Cosimo, mais preocupado com a política e a diplomacia, negligenciou o negócio, possibilitando que as suas muitas filiais, menos supervisionadas, ganhassem mais poder e cometessem negócios ruinosos, como o empréstimo da sucursal de Londres ao Rei Eduardo IV, nunca totalmente pago.
Apesar disso, a queda dos Medici acabou por se dever unicamente a circunstâncias que rodearam o próprio negócio. Em 1494, no meio das disputas cada vez mais acesas entre as diferentes regiões italianas, e com a invasão francesa, a família, apelidada de pagã e imoral por Savonarola, foi expulsa e a sua propriedade confiscada e muita dela liquidada. Só mais tarde, a sua importância e mecenato foram reconhecidos, consagrando Cosmo I de Medici, como Duque de Florença e Grão-Duque da Toscânia, por aclamação.
A ascensão do negócio da família Medici constitui um exemplo da génese e do funcionamento das actividades bancárias. O seu projecto criou as estratégias de um negócio que deixava de ter como principal instrumento a matéria-prima, o ouro, a moeda, para criar o valor em papel, e, após a sua derrocada, o seu exemplo foi seguido por muitos bancos do norte da Europa, com tanto ou mais sucesso para as suas gentes, comércio, artes e ciências, acabou por ser, a última alavanca civilizacional para o desenvolvimento humano, porque nem toda a riqueza é necessariamente má, principalmente, quando é distribuída.
Telescópio construído por Galileu, protegido da família Medici.
*Factos como este podem ser encontrados na série documental, The Ascent of Money, de Niall Fergunson, um relato da história da ascensão do sistema financeiro e, como a história da finança se repete de forma previsível.