Desta vez, trago-vos mais um filme de David Lynch, "Inland Empire". Este é o seu derradeiro filme. Totalmente filmado em câmara digital, este é o filme que Lynch sempre ambicionou fazer, sob um ponto de vista artístico. É, talvez, o filme mais bizarro do realizador, ultrapassando mesmo "Mulholland Drive". A sua mensagem e linha condutora parecem indecifráveis e constituem um dos maiores desafios à actual elite cultural cinematográfica. Na verdade, poderá mesmo suceder o filme não ter um fio condutor ou uma explicação lógica global, por si mesmo.
Poder-se-á dizer que o filme é, nos seus momentos iniciais, uma narrativa que expõe a sua história de base - um "remake" de um filme polaco que nunca fora acabado, por certos eventos estranhos em seu redor que levaram à morte dos dois protagonistas. O restante, o grosso do filme, um autêntico pesadelo caótico parecendo surgir das trevas de uma mente esquizofrénica. A acção parece não obedecer a um princípio racional. Nikki, a heroina do filme, parece cada vez mais afundada numa maldição hipnótica, e a sua realidade cada vez mais fundida com a da personagem que encarna no "remake" polaco, com as consequências tenebrosas que isso implica. Passado e futuro, realidade e ficção, são misturados num caos sucessivo de cenas aparentemente desconexas e variadas, que a levam a viver episódios do próprio filme polaco, do filme que encarna, e da sua realidade cada vez mais confusa e apoteótica, elicitando todos os seus demónios interiores. Muitos pequenos detalhes conspícuos relacionam as cenas umas com as outras. Diálogos estranhos, pernonagens estranhos e enigmáticos e ambientes surreais e perturbadores sucedem-se num tumulto caótico à medida que a intriga avança.
O segredo está em não procurar encontrar uma explicação lógica para todos os pormenores. O filme é pura e simplesmente um grande pesadelo, e que pesadelo! Todos os elementos do subconsciente perturbado da personagem emergem numa catarse de sentimentos, sejam eles de terror, raiva, medo, sofrimento ou contemplação. O filme passa por todos eles de forma exímia, muito graças ao talento da actriz Laura Dern, absolutamente versátil e eficaz na interpretação das sucessivas e variadas dimensões da sua personagem, tornando tudo esmagadoramente verdadeiro, apesar de estranho e impossível.
Ao nível de realização, a utilização de câmara digital conferiu a Lynch a liberdade e originalidade de utilizar maioritariamente planos pouco usuais. A focagem das personagens muito próxima da cara, no limite de focagem, torna tudo mais próximo e intenso, exponenciando o surrealismo do filme. Por outro lado, a portabilidade da câmara digital possibilitou o seguimento muito próximo de certos gestos aparentemente não importantes para as cenas, mas que aumentam a tensão do momento, como se lá estivéssemos, absortos nesses gestos banais como encher uma chávena de café, como um mecanismo de escape perante a estranheza de tudo o que se está a passar.
Obviamente que o filme não será para todos, tal como um quadro de Picasso não poderá ser perceptível por todos. Este é um filme que não obedece a regras, é pura e simplesmente um esgar de génio e liberdade artística. Como referiu Gustavo Marquês Van Prog "é bom saber ainda existirem realizadores que se preocupam em trazer algo de novo, de diferente". Mais que preso a uma simples história, este filme encarna a arte cinematográfica como uma pintura abstracta, base para uma experiência incalculável sob domínios e sentimentos superiores.
"Como vento a ecoar nos túneis da mente"
5 comentários:
obra-prima total, faça-se uma oração. Amén.
Três horas de um horroroso pesadelo em que Lynch passeia todos os seus fetiches. Cenas desconexas, sucessões ilógicas, planos arrojados. O quebra cabeças para os mais pragmáticos, o martírio dos menos habituados e disponíveis, a volúpia mental para quem gosta de apreciar obras singulares como esta o é.
Indeed : | E marca, mesmo.
Onde está eucinéfilo, onde estão as suas palavras despertadoras sobre Inland Empire?
Obra prima (sem dúvida). O acordar do cinema novo para a electricidade que percorre nas correntes das casas do nosso inconsciente. O súbtil toque de mistério, sabedoria e mestria...
Acabem, pois, com tudo. Descubram-se as cores, naufraguem-se as moléculas e esqueça-se o atómo. Analise-se, então, esta obra de Lynch que percorre toda a bigorna da ciência futura e é a seta gigante de saída do Labirinto de Creta.
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